Benoni Belli afirma que país está comprometido com a defesa da democracia 'de maneira muito firme’

Aprovado na última quarta-feira pelo Senado como representante permanente do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), Benoni Belli deve assumir o cargo em julho, no lugar de Otávio Brandelli. Diplomata de carreira e atual cônsul-geral em Chicago, Belli afirma que a democracia e a moderação devem prevalecer nos debates que envolvem 35 países do hemisfério.

Para o futuro embaixador na OEA, aplicar sanções e isolar países que desrespeitam os princípios democráticos, como a Nicarágua, é um caminho que a diplomacia brasileira vê como equivocado e contraproducente. Isto porque, na sua visão, enrije posições, aumenta a polarização e gera endurecimento de governos que se sentem acuados.

Sobre as críticas à OEA de países como a Nicarágua e a Venezuela, o embaixador cita uma frase do ex-secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld:

“As Nações Unidas não foram criadas para garantir o paraíso na Terra, mas para livrar-nos do inferno”.

Qual o papel do Brasil na OEA?

O Brasil é membro-fundador da OEA, cuja Carta foi adotada 1948. E sempre participou do debate regional desde as conferências pan-americanas iniciadas no fim do século XIX, passando pela União Panamericana de 1910, chegando aos dias de hoje. 

Esse processo foi importante para consolidar alguns princípios que são caros à diplomacia brasileira, como o respeito à integridade territorial, a solução pacífica das controvérsias, a promoção dos direitos humanos, o desenvolvimento e a defesa da democracia. 

Nossa atuação sempre foi construtiva, marcada pela busca do diálogo e de soluções conjuntas para desafios comuns. Entendemos o valor de ter uma organização e um sistema interamericano que proporcionem espaço de cooperação em que todos os países das Américas, grandes e pequenos, possam participar em pé de igualdade.

Quando estourou a guerra na Ucrânia, o Brasil não assinou uma declaração contra a invasão russa, sob o argumento de que não era o local adequado. Pode comentar?

A OEA é uma organização regional, assim constituída de acordo com o Capítulo VIII da Carta das Nações Unidas. As ameaças à paz e à segurança internacionais são um tema da competência do Conselho de Segurança e, subsidiariamente, da Assembleia Geral da ONU. 

Mas a posição brasileira sobre o tema é clara, como demonstrou nosso voto favorável à resolução que rejeitou a ação de força russa, sem deixar de exortar as partes a negociar uma solução pacífica. O foco da OEA é a nossa região. 

A meu ver, deve ser um espaço de diálogo para enfrentar desafios comuns dos seus Estados membros nos quatro pilares estratégicos da organização: democracia, direitos humanos, desenvolvimento integral e segurança multidimensional.

Nos últimos quatro anos, houve um distanciamento do Brasil em relação a outros vizinhos, como Venezuela e Cuba, devido a questões ideológicas. Hoje vemos uma reaproximação que vai se refletir na OEA?

A nossa tradição diplomática, que foi retomada, é de falar com todos os países, manter canais de comunicação com quem tem visão de mundo semelhante à nossa e com quem pensa diferente. 

Creio que a OEA, para poder ser um fator positivo e ajudar a encaminhar soluções construtivas, inclusive em temas delicados de crises políticas e violações de direitos humanos, precisa preservar capacidade de interlocução. 

Em alguns círculos, infelizmente, ainda prevalece uma ideia simplista, uma espécie de opção preferencial e quase automática pela sanção e pelo isolamento. Isso é contraproducente, apenas enrijece posições, aumenta a polarização e gera endurecimento de governos que se sentem acuados. 

É preciso calibrar a pressão política, tendo presente as obrigações assumidas por todos, sem romper diálogo ou provocar o isolamento, sob pena da irrelevância. 

A organização contribuiu para superar conflitos e crises no passado, em particular na América Central no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990. O secretário-geral era o Embaixador João Clemente de Baena Soares. Ele conseguiu fazer a diferença, porque a OEA era vista como neutra. Era capaz de conversar com todos.

Há problemas sérios na Nicarágua, com o duro regime de Daniel Ortega. Qual a mensagem do Brasil no fórum regional em defesa da democracia?

O Brasil está comprometido com a defesa da democracia de maneira muito firme. Temos padrões avançados na OEA que foram aceitos por todos e queremos ajudar os países a fortalecerem suas instituições democráticas, inclusive por meio da assistência prestada pela organização em matéria eleitoral. 

O grande desafio será avançar nessa direção de maneira sustentável, sem provocar a debandada de países que por ventura se sintam cobrados ou isolados. A Nicarágua, que você menciona, por exemplo, denunciou a Carta da OEA. 

A despeito dos problemas que o país enfrenta, eu me pergunto se a OEA poderá ter algum papel na busca de soluções com a retirada do país da organização. 

Pode haver quem considere isso positivo por ter um efeito demonstração, tornando a OEA um clube mais homogêneo. Eu teria mais cuidado. Como disse na resposta à sua pergunta anterior, recomendaria cautela em relação a uma perspectiva meramente punitiva. 

Aliás, a Carta da OEA, ao tratar de solução pacífica de controvérsias, fala de bons ofícios e mediação. Esse espírito conciliador precisa ser resgatado também no caso de crises internas, sem abrir mão de aplicar na medida certa eventual pressão política combinada com incentivos positivos para superação das crises. 

Não há qualquer problema em pedir cumprimento de obrigações em matéria de democracia e direitos humanos, mas é preciso nunca fechar os canais de diálogo. Acho que diplomacia e moderação devem prevalecer.

O governo federal brasileiro teve problemas no passado em seu relacionamento com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Isso pode afetar a participação brasileira na OEA?

Eu tenho um carinho especial pelo sistema interamericano de direitos humanos, porque iniciei minha carreira na então recém-criada Divisão de Direitos Humanos do Itamaraty, sob a chefia do saudoso Embaixador José Augusto Lindgren Alves, no idos de 1995. 

Trabalhamos muito para a plena inserção do Brasil no sistema de direitos humanos da OEA e no da ONU. Creio que a CIDH, assim como a Corte sediada em São José, cumprem papel importante na proteção das vítimas de violações, ajudando a aprimorar também as políticas nacionais de proteção dos direitos humanos. 

Basta lembrar que a Lei Maria da Penha foi adotada como resposta a uma recomendação do sistema. Pode haver algum grau de tensão, sim, entre o sistema e os governos, mas é possível minimizar isso com mais transparência e diálogo. 

A CIDH é formada por peritos independentes, então suas recomendações não se confundem com a OEA como instituição integrada por Estados membros, embora dela faça parte. Temos um governo comprometido com a agenda de direitos humanos, o que ajuda a suavizar o relacionamento. 

Acredito que é possível aprimorar os trabalhos da CIDH no sentido de aumentar a previsibilidade, a segurança jurídica e a fundamentação de suas recomendações, tendo presente os interesses das vítimas.

A OEA tem sido criticada por alguns líderes regionais, como o venezuelano Nicolás Maduro, que com apoio de Lopez Obrador, defendeu a extinção do organismo. O que dizer sobre isso?

Não tenho conhecimento dessas declarações. A verdade é que a OEA e o sistema interamericano de maneira mais ampla, que inclui a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), seguem sendo importantes. 

O programa de desminagem, por exemplo, livrou a América Central das minas terrestres, atuou também na fronteira entre Peru e Equador e segue trabalhando na Colômbia, com participação de militares brasileiros. A cooperação técnica via OEA é particularmente importante para países de menor desenvolvimento relativo, como países do Caribe. 

Há uma ampla agenda na área de combate ao crime e novas ameaças, em que a OEA oferece plataforma insubstituível. As missões de observação eleitoral são importantíssimas e seguem contribuindo para assegurar a qualidade das democracias na região. 

Enfim, são inúmeros os exemplos de bons serviços que a organização presta. Isso não significa dizer que tudo é perfeito. Mas eu acho que cabe à OEA o mesmo raciocínio do ex-secretário-geral da ONU Dag Hammarskjöld, para quem as Nações Unidas não foram criadas para garantir o paraíso na Terra, mas para livrar-nos do inferno. 

Apesar dos defeitos e limitações, não creio que estaríamos melhor sem a OEA. Devemos trabalhar para sanar suas falhas e lacunas, de maneira propositiva, buscando consensos e respeitando as diferenças naturais entre seus membros.


Fonte: O GLOBO