Ultranacionalistas ucranianos, separatistas pró-Kremlin e mercenários ganharam poder de fogo e reconhecimento durante o conflito, tendo voz ativa na tomada de decisão

Incorporados aos esforços de guerra de Kiev e Moscou, grupos paramilitares se tornaram uma extensão íntima das tropas regulares de Ucrânia e Rússia. 

Mercenários, pró-separatistas e ultranacionalistas receberam missões estratégicas e concessões especiais, foram abastecidos com armamentos modernos e conquistaram um reconhecimento público ao longo de mais de 14 meses de combate — o que pode criar efeitos adversos para os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, da Rússia, Vladimir Putin, e até mesmo para um eventual (no momento, improvável) acordo de paz.

Seja apoiando a Rússia ou a Ucrânia, paramilitares foram e são utilizados largamente na linha de frente do conflito, principalmente no Leste ucraniano. Em Bakhmut, as ações russas são coordenadas pelo grupo mercenário Wagner. Em Mariupol, em abril do ano passado, o Batalhão Azov foi a última linha de defesa ucraniana contra a ofensiva russa. 

Logo após a autorização da invasão pelo Kremlin, em 24 de fevereiro de 2022, separatistas das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk, lideradas respectivamente por Denis Pushilin e Leonid Pasechnik na região do Donbass, foram os primeiros a se engajar em combate.

Embora sejam considerados ativos valiosos no cenário de guerra, especialistas veem com ressalvas o fortalecimento dos grupos por sua aparente pouca ligação com a cadeia de comando e hierarquia das Forças Armadas. 

Tentativas de Zelensky de desmobilizar os paramilitares ultranacionalistas no Leste da Ucrânia anos antes da guerra não tiveram sucesso — com o jornal Kyiv Post chegando a registrar bate-bocas entre o então político recém-eleito e combatentes.

— O monopólio legítimo da força na Ucrânia não é mais um monopólio, é um oligopólio. Grupos paramilitares que já tinham bastante protagonismo na região do Donbass antes da invasão russa ganharam uma ligação com o Ocidente, por meio do escoamento de armas e o treinamento em larga escala — afirmou ao GLOBO a professora Mariana Kalil, da Escola Superior de Guerra, referindo-se a paramilitares ucranianos. 

— Se a solução para o conflito passar por uma cessão ou autonomia territorial de Donetsk e Luhansk, os grupos pró-Ucrânia vão aceitar? — indagou.

O mesmo questionamento é feito por Tito Lívio Barcellos Pereira, geógrafo e pesquisador do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais da PUC-SP.

— Uma vez que o conflito termine, qual será o status desses grupos? Eles vão ser desarmados e reintegrados à sociedade civil? Vão obedecer ao comandante em chefe, que é o presidente da República? — questionou.

Por outro lado, se a Rússia por ventura aceitar, em uma negociação de paz, abrir mão das províncias de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporíjia — que anexou em setembro do ano passado, em ação considerada ilegal pela comunidade internacional —, não há garantia de que os separatistas pró-Moscou acompanhem sua decisão. Dessa forma, Kiev continuaria com rebeldes armados em seu território, conjuntura que enfrenta há nove anos.

— A guerra no Leste do país acontece desde 2014 — explica Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM-SP. — É reconhecido internacionalmente que o governo central em Kiev não tem controle total de seu território desde então.

Herança sombria

Naquele ano, a Ucrânia foi palco da Revolução Maidan, série de manifestações que derrubou em 10 dias o então presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, considerado pró-Rússia. Também em 2014, a Rússia invadiu e anexou a Península da Crimeia, desatando o movimento pela independência em Donetsk e Luhansk e um conflito que deixou estimados 15 mil mortos.

Ao contrário da Crimeia, o pesquisador relembra que Moscou não reconheceu de imediato a independência das repúblicas separatistas do Donbass, algo que só fez poucos dias antes de invadir a Ucrânia no ano passado, porque sua primeira intenção "era criar uma instabilidade dentro da Ucrânia e forçar o governo Maidan a negociar com os rebeldes".

— Por isso a primeira tentativa de solucionar a questão foi pelos Acordos de Minsk, uma resolução pacífica do conflito — afirmou Pereira, referindo-se a um plano de 12 pontos jamais implementado em sua totalidade que tentou pôr fim ao conflito no Leste ucraniano entre os separatistas e o Exército de Kiev.

Foi em meio ao cenário caótico desde 2014 que movimentos civis ultranacionalistas se alistaram voluntariamente para tomar parte na “operação antiterrorista” contra os atos russos, dando origem aos batalhões paramilitares ucranianos.

— Quando estoura a guerra no Donbass, com a insurgência incentivada pela Rússia e pela anexação da Crimeia, grupos e partidos minoritários na Ucrânia, de forte verve ultranacionalista e comportamento fascistoide, começam a formar grupos paramilitares. 

— detalha Pereira. — Antes da invasão, eles costumavam organizar eventos como comícios, passeatas e "flash mobs", mas depois passam a se voluntariar e combater sob batalhões e operar sob estrutura, hierarquia e regras próprias.

O mais famoso — e controverso — deles, o Azov, ganhou repercussão internacional no ano passado por liderar a resistência em Mariupol. O regimento foi um dos mencionados por autoridades russas para justificar a “operação de desnazificação” da Ucrânia, como Moscou inicialmente se referia à invasão do país vizinho. 

O grupo foi tratado, inclusive pela imprensa ocidental, como de orientação neonazista, utilizando insígnias como o Wolfsangel, símbolo medieval apropriado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial — e recentemente retirado dos uniformes do grupo para enfraquecer a propaganda russa.

O processo foi similar do lado separatista. Grupos civis pró-Rússia, incentivados por Moscou, uniram-se principalmente a desertores das Forças Armadas ucranianas, defensores da separação do Donbass, e se organizam em batalhões. Assim como no caso das forças pró-Kiev, as principais unidades, como o Batalhão Esparta e o Batalhão Somália, mantinham uma simbologia ligada à extrema direita russa e ao neonazismo.

— Inicialmente, entre os grupos ucranianos, não havia um comando único. Muitos deles combateram no Donbass de forma autônoma. Do lado separatista, havia uma organização mais centralizada — explica Pereira, acrescentando que, com a chegada de Roman Poroschenko ao poder após a Revolução Maidan, extremistas ucranianos passaram a ser incorporados a cargos de liderança, criando uma espécie de cadeia de comando mais independente do que das tropas regulares.

Desafio para a Rússia

O grupo mercenário Wagner, um dos braços armados mais importantes para os conflitos de 2014 e do presente, surgiu do entorno de Putin — mais especificamente da cozinha. Ele é liderado por Yevgeny Prigojín que, até 2014, era conhecido por ser o “cozinheiro de Putin” por oferecer serviços de catering para o Kremlin e manter uma relação próxima com o presidente russo.

Com a invasão da Crimeia, no entanto, Prigojín — que admitiu ser o criador do grupo mercenário apenas no ano passado, com a guerra já em curso — diversificou seus serviços e fundou a companhia militar privada, que tem atuação internacional e atualmente atua em solo ucraniano, principalmente em Bakhmut.

Há relatos de que os serviços oferecidos pelo grupo na guerra da Síria foram pagos com petróleo e gás natural e, durante a guerra na Ucrânia, Prigojín foi autorizado a recrutar combatentes em presídios.

Informações da Inteligência americana apontam que, dos estimados 20 mil russos que morreram na Ucrânia desde dezembro, metade pertenceria ao grupo Wagner. Observações feitas por militares ucranianos na linha de frente apontam que homens — provavelmente os ex-detentos — são enviados em missões quase suicida, alguns deles desarmados.

A projeção dada pela atuação do grupo na Ucrânia colocou Prigojín em conflito aberto com o comando militar russo, incluindo o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov — ele é apontado como responsável por pelo menos uma troca de comando da missão, ordenado por Putin.

Ele também vem pressionando por mais munições para prosseguir em Bakhmut e, na última sexta-feira, deu um ultimato de que suas tropas abandonarão a cidade na próxima quarta-feira se não recebê-las.

Por isso, o cenário pós-guerra não guarda desafios apenas para Kiev. Além do desconforto de setores russos com o protagonismo em excesso dos paramilitares sob comando de Prigojín, a autorização para que ele recrutasse presidiários para combater na linha de frente, oferecendo em troca a extinção de suas penas, pode ter um efeito em larga escala no país.

— Efeitos colaterais já são sentidos na Rússia com a volta dos prisioneiros que foram convocados com o incentivo de comutação da pena. Há registro de ao menos um deles já sendo acusado de assassinato — afirmou Rudzit, da ESPM-SP. — Em um curto espaço de tempo, a Rússia pode ter que enfrentar o retorno dessas pessoas, agora em liberdade.


Fonte: O GLOBO