Resultado é um revés para o oficialismo, que perdeu inclusive o poder de vetar cláusulas; ultraconservadores terão 22 de 50 assentos

Em um enorme revés para o presidente Gabriel Boric, a extrema direita chilena teve uma vitória acachapante nas eleições de domingo no país, que escolheram os 50 integrantes do conselho que irá elaborar uma Constituição para substituir a atual, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). 

O resultado, reflexo da apatia popular e de erros seguidos da esquerda, deve render uma Carta não muito diferente da atual, em uma derrota também para os movimentos sociais do país, que em 2019 capitanearam grandes protestos que tinham entre suas demandas um novo e aprimorado texto.

Com 99% dos votos apurados, o Partido Republicano, sigla de extrema direita liderada pelo ex-candidato presidencial José Antonio Kast, derrotado por Boric nas eleições de 2021, obteve 3,47 milhões de votos, ou 35% do total de votos válidos.

Terá 22 assentos no conselho responsável por redigir o novo documento e poder de vetar propostas. O projeto será submetido a um plebiscito em dezembro.

A lista Unidade para o Chile, que reúne a esquerda oficialista, teve 28% dos votos válidos, apoio de 2,8 milhões de eleitores que se traduzirá em 17 cadeiras — para que tivessem poder de veto, precisariam de ao menos quatro representantes a mais. 

Em um pleito no qual o voto foi obrigatório, a direita tradicional conseguiu apenas 21,07% dos votos válidos, ou 11 conselheiros, após receber o endosso de 2,06 milhões de eleitores.

Os votos nulos e brancos ultrapassaram a marca da direita tradicional, unida na frente Chile Seguro: com 21,5% dos votos válidos, foram juntos a opção de 2,69 milhões de eleitores. A abstenção foi de 15,1%, ou seja, 2,29 milhões dos chilenos não foram às urnas.

Na prática, 4,98 milhões de chilenos — ou 32,87% dos 15,1 milhões de eleitores aptos — votaram em brancos, anularam ou não foram às urnas, segundo dados do Serviço Eleitoral do Chile. Superior aos votos obtidos pelo Partido Republicano, a soma reflete a apatia dos chilenos, mas também uma forte campanha nas redes sociais e de políticos independentes que pediam para que os eleitores anulassem seus votos.

Ao canal 24 Horas, o diretor do Instituto de Estudos da Sociedade (IES), Claudio Alvarado, disse que a grande quantidade de votos nulos provavelmente será lida como "um voto de castigo contra o sistema político", afirmando que o fenômeno "deve ser analisado e levado muito a sério". Cristián Steward, diretor executivo da IdeaPaís, também disse à Emol que uma reflexão é necessária, chamando o ocorrido de "impressionante".

A escolha do novo conselho veio oito meses após os chilenos rejeitarem por ampla margem a proposta de reforma elaborada pela Convenção Constitucional anterior, que tinha uma maioria de esquerda e independentes, dos quais muitos vieram dos protestos de 2019 — movimento indissociável do triunfo de Boric e de sua Frente Ampla sobre Kast na disputa presidencial de dois anos depois.

A Assembleia, a primeira com paridade de gênero do mundo, havia introduzido uma série de inovações como a validade de um sistema judicial indígena, além de abrir caminho para o direito ao aborto e da garantia de educação, saúde e Previdência públicos. 

A postura combativa de muitos dos constituintes gerou uma forte rejeição de setores expressivos da sociedade, mas mesmo assim todas as forças políticas importantes do país concordavam que uma nova carta seria necessária. A exceção era o grupo de Kast.

Antes dos resultados finais serem conhecidos, Pierina Ferretti, a diretora executiva da Fundação Nodo XXI, ligada a Boric, afirmou:

— Se essas previsões se confirmarem, serão paradoxos da História. Aqueles que por décadas negaram a possibilidade de uma mudança constitucional e que hoje representam a maior ameaça à democracia terão o caminho aberto para escrever o novo texto sem maiores empecilhos — disse ela, sinalizando a dimensão do abalo sísmico em Santiago.

'Primeiro dia de um futuro melhor'

O ex-candidato ao Palácio de La Moneda se pronunciou ainda na noite de domingo, na sede de seu partido. Aos gritos de "viva Chile" e "surra", que se referiam à dimensão da vitória, afirmou:

— Hoje é o primeiro dia de um futuro melhor para o nosso país — disse ele, apontando para problemas de segurança pública e questões imigratórias. — O Chile derrotou um governo fracassado — completou o político, que ficou no pódio por cerca de cinco minutos.

Boric, que acumula derrotas nos seus 15 meses de governo, também discursou, reconhecendo o "inegável crescimento do Partido Republicano", e deu um conselho com tons de mea culpa a Kast.

— O processo anterior fracassou, entre outras coisas, porque não soubemos escutar quem pensava diferente — lamentou Boric. — Quero convidar o Partido Republicano a não cometer o mesmo erro que nós cometemos — completou, afirmando que "quando o pêndulo da História se move de um extremo ao outro em intervalos curtos, são as populações mais vulneráveis que sofrem com o enfrentamento das elites.

As duas direitas — a extrema e a traducional, liderada por figuras que se comprometeram com uma nova Carta — tiveram um bom resultado conjunto. Seus 33 representantes superam inclusive as melhores projeções das últimas semanas e, se conseguirem consenso, terão liberdade para propor, aprovar e modificar normas constitucionais sem sequer debater com a esquerda. Isso porque ultrapassam os três quintos, ou 30 assentos, necessários para tais medidas.

Outros derrotados

Não está claro até que ponto haverá consenso para isso, contudo, e muito depende dos três partidos de direita tradicional: a União Democrática Independente (UDI), a Renovação Nacional e o Evópoli. Cabe ver se cederão às posições do Partido Republicano e endurecerão sua postura ou tentarão manter uma distância tática e negociar com os outros setores.

— A grande pergunta é se os dirigentes da direita tradicional vai aguentar o tsunami. A tentação de seguir Kast e companhia será muito grande — avaliou ao El País Cristóbal Rovira, especialista na extrema direita chilena. — Todos os atores debatem sobre segurança cidadã dia e noite, é o tema da extrema direita. É como na Europa: se todos falam de imigração, quem ganha a batalha é quem estar contra a imigração — disse ele, referindo-se ao repúdio à violência na zona Mapuche, ao tráfico e à violência comum.

A votação foi ainda a pá de cal na centro-esquerda agrupada na lista Tudo pelo Chile — nela estão o Partido pela Democracia (PPD) do ex-presidente Ricardo Lagos, o Partido Radical e a Democracia Cristão, a única das três forças que não pertence ao governo Boric. Juntos tiveram 9% dos votos e zero assentos.

É uma derrota maciça para o setor moderado que já compôs governos da Concertação (1990-2010), e também sinal de que a política chilena caminha cada vez mais para os extremos.

O Partido da Gente, do antissistema Franco Parisi, que retornou aos EUA, onde mora, pouco após a votação de domingo, ficou em último lugar, contrariando as projeções de que poderia ter ao menos alguns assentos. Nas últimas eleições presidenciais, Parisi havia ficado em terceiro lugar, com 13% dos votos, mesmo sem estar presente no Chile durante a campanha eleitoral.


Fonte: O GLOBO