Disputa envolve o Internacional Shopping, em Guarulhos, com direito a comissão de inquérito cancelada

Quem frequenta o Internacional Shopping nem imagina que o centro comercial de Guarulhos, na Grande São Paulo, às margens da Dutra, é cenário de uma história digna de novela policial, envolvendo milhões de reais e com atores que incluem medalhões do Direito, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), um ex-ministro de Estado, agentes públicos locais e até uma agência de espionagem privada.

A trama começa em 2017, quando a empresa israelense Gazit comprou, por R$ 940 milhões, 70% dos 80,1% que a General Shopping detinha no empreendimento. Os restantes 19,9% pertenciam ao fundo IRB e hoje são da XP. 

Além do Internacional, a Gazit detém participação em mais sete shoppings em São Paulo, incluindo Cidade Jardim e Eldorado. Já a General é controlada pela família Veronezi, de Guarulhos, tem capital aberto na B3 e diversos empreendimentos em sete estados.

O acordo de aquisição dava aos israelenses da Gazit preferência de compra dos 10,1% restantes da General, mas a relação azedou em 2018, quando esta vendeu 0,3% a uma outra empresa da família Veronezi.

A Gazit entendeu que o combinado havia sido desfeito e iniciou uma disputa judicial. Contratou o escritório de advocacia Mattos Filho, um dos mais tradicionais do país. Já a General Shopping é assessorada pela gigante Cescon Barrieu. 

Em fevereiro de 2019 foi feito um primeiro acordo, quando os Veronezi venderam sua participação restante aos israelenses. O que parecia pacificado, contudo, era apenas o primeiro round.

Sem vagas certas

É que não fez parte da compra do Internacional um bolsão de estacionamento que seguiu com os Veronezi. Localizado em frente ao empreendimento, ele foi usado em esquema de comodato até julho de 2022, para complementar vagas oferecidas no local. 

Enquanto isso, a Gazit tentava, sem sucesso, autorização da prefeitura de Guarulhos para construir um edifício-garagem no estacionamento interno, projeto que já existia quando o shopping foi inaugurado, em 1998.

Na iminência de perder o direito de usar o bolsão e, consequentemente, as vagas necessárias para cumprir o alvará de funcionamento do shopping, a Gazit tentou comprar o terreno. Mas recuou, revelam fontes a par da história, quando os donos pediram R$ 480 milhões pelo terreno, que os israelenses avaliavam em R$ 92 milhões.

A Gazit mudou então de estratégia e adquiriu outros terrenos nos arredores. Foi quando entrou em cena a Câmara Municipal de Guarulhos, que aprovou um projeto limitando o número de vagas em estacionamentos externos a cem. 

A lei foi sancionada em junho do ano passado pelo prefeito Gustavo Costa, o Guti (PSD), mas foi derrubada por liminar.

Em novembro do ano passado, vereadores instauraram uma Comissão de Inquérito (CEI) para apurar se havia contaminação em um dos novos terrenos comprados pela Gazit. A empresa nega o problema ambiental. 

Para se defender, contratou o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo (PT) e o criminalista Igor Tamasauskas, que foi subchefe para assuntos jurídicos da Presidência nos dois primeiros governos Lula.

Em seu relatório final, em 13 dezembro de 2022, a CEI determinou a cassação do alvará de funcionamento do shopping, mas a votação em plenário foi suspensa no dia seguinte por decisão do ministro Alexandre de Moraes. Em seu pedido ao STF, Cardozo argumentou que a Gazit não teve amplo direito de defesa nem acesso ao relatório. A decisão foi ratificada no mês seguinte.

Em fevereiro, os vereadores decidiram prorrogar a comissão por mais 30 dias. Em ação iniciada em março, desta vez na Justiça de São Paulo e contra o presidente da CEI, vereador Edmilson de Souza (PSOL), a Gazit argumenta que há tentativa de causar dano de reputação e financeiro à empresa. O processo, ao qual O GLOBO teve acesso, corre em segredo de Justiça.

Em março, o juiz Gilberto Moraes Costa, da 6ª Vara Criminal de Guarulhos, decidiu extinguir a CEI por “vícios formais”. 

No mesmo mês, a Polícia Civil instaurou inquérito com base em denúncia apresentada pela Gazit de que a empresa teria sido procurada por um emissário do vereador Geraldo Celestino (PSC), membro da comissão. Ele afirmava “falar em nome dos agentes públicos” da comissão e oferecia supostas vantagens indevidas.

Na Câmara, a investigação foi proposta pelo vereador Edmilson de Souza. Ele, Celestino e o diretor de comunicação da prefeitura, Ernesto Zanon, foram gravados em áudio e vídeo por agentes da Black Cube, que se passaram por representantes de um grupo empresarial estrangeiro interessado em se instalar em Guarulhos.

Nas gravações, às quais O GLOBO teve acesso, eles são indagados sobre a participação dos Veronezi na CEI e afirmam que a comissão atenderia a interesses da família.

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Áudios comprometedores

A investigação privada foi conduzida entre setembro e dezembro do ano passado por uma agência internacional de espionagem com sede em Londres. Não está claro quem foi o contratante da investigação. A Gazit afirmou ao GLOBO desconhecê-la.

Em um dos vídeos, Souza diz que a família controladora da General Shopping “está envolvida” na comissão, sem dar detalhes. Em outra gravação, ele ouve do agente proposta de “incentivos pessoais” para Souza e Celestino e responde “perfeito”. 

O vereador ouve do agente um pedido para que seus negócios não tenham o destino do que “aconteceu com aqueles judeus.” O vereador responde que “do ponto do Legislativo, a proteção se dá comigo e com Celestino. Nós resolvemos.”

Celestino também aparece em outra gravação dizendo ser “muito ligado” aos Veronezi, com quem tem “uma parceria de ajuda mútua”. O agente pergunta se tal ajuda ocorreu “também naquele caso da comissão.” Celestino diz que sim. Em outro áudio, Zanon diz ao agente que “houve acordo com vereadores que começaram a colocar restrições para ampliação do negócio (da Gazit).”

Procurado, o diretor da prefeitura diz em nota que os áudios são trechos isolados retirados de contexto de uma conversa sobre um projeto de carro elétrico. E que eram “situações hipotéticas”. O vereador do PSOL negou qualquer influência externa na instauração da CEI e disse não conhecer os controladores da General Shopping. 

Celestino, por sua vez, informou que não vai se pronunciar sobre a investigação privada. Afirmou que a CEI “foi imparcial” e negou ter havido qualquer pedido da General Shopping ou de seus controladores pra instaurar a comissão:

— Não conheço nenhum diretor do shopping, só os representantes que compareceram à CEI.

A prefeitura de Guarulhos informa jamais ter recebido relatos de agentes públicos sobre proposta indevida envolvendo o shopping e que aguarda os documentos devidos da Gazit para definir a aprovação do edifício-garagem. Em nota, a Gazit diz que “cumpre rigorosamente a legislação e tem plena confiança nas instituições brasileiras.” Procurada, a General Shopping não retornou.

Como a CEI foi extinta por ordem judicial, o International Shopping segue funcionando normalmente.


Fonte: O GLOBO