Com 'tempestade perfeita' na economia, presidente anunciou que não vai disputar reeleição

O temor de um colapso na economia argentina nos moldes do que ocorreu entre 2001 e 2002 ganhou fôlego nas últimas semanas. Os ingredientes para a turbulência vão desde uma inflação fora de controle — que bateu 104,3% em 12 meses até março —, a uma nova escalada do dólar, que já supera os 400 pesos, passando pela maior seca no país desde 1929.

No front político, os conflitos na coalizão do governo, marcado pela disputa de poder entre o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, também não dão dão trégua. O resultado é que as projeções para o Produto Interno Bruno (PIB) argentino passaram de 2% a 3% para zero este ano. Diante dessa espiral de problemas, Fernández anunciou ontem em vídeo que não disputará a reeleição no pleito marcado para 22 de outubro e se comprometeu a entregar a faixa a quem quer que vença a disputa.

A crise vivida entre 2001 e 2002 ainda é um trauma recente na memória dos argentinos. Na época, a maxidesvalorização do peso argentino provocou a renúncia do então presidente Fernando de la Rúa no meio do mandato.

Na ocasião o país sofreu confisco bancário e anunciou calote da dívida pública. Antes disso, a crise que terminou em 1989 obrigou o então presidente Raúl Alfonsín a antecipar em seis meses sua saída do poder, em meio a um cenário de hiperinflação, com taxa anual de 3.079%. O novo capítulo de turbulência na História do país deve ter impacto no pleito, que ocorre em seis meses.

— Passam os anos, e as crises não se resolvem. A Argentina está suportando a seca mais grave desde 1929, e 30% de nossa produção (agropecuária) se perdeu — afirmou Fernández recentemente.

O economista Dante Sica, ex-ministro da Produção do governo Mauricio Macri (2015-2019) e assessor da pré-candidata presidencial da oposição Patricia Bullrich, avalia que o país pode estar caminhando para o que ele chama de “evento explosivo”:

— No primeiro trimestre, a situação internacional se agravou, e pioraram muito as expectativas. Internamente, ficou mais complexo. O evento explosivo seria uma forte desvalorização da moeda e inflação mensal que poderia chegar ao patamar de 30%.

O economista afirma que o governo não poderá mais “empurrar a situação com a barriga até as eleições, como pretendia”. 

A Casa Rosada faz exatamente o mesmo diagnóstico. Em recente reunião com Wendy Sherman, número 2 do Departamento de Estado americano, o ministro da Economia argentino, Sergio Massa, afirmou, segundo meios de comunicação locais, que “a seca nos deixou sem os dólares que tínhamos previsto para chegar até a eleição. Hoje nossa economia está sem âncora.”

Dólar acima de 400 pesos

Na mesma reunião, realizada na República Dominicana, Massa teria pedido uma antecipação de reembolsos do FMI e a ajuda de outros organismos internacionais.

Na última semana, o dólar paralelo (blue, um dos 48 tipos de dólar no país) ultrapassou os 400 pesos, no momento em que as reservas líquidas do Banco Central da República Argentina (BCRA) estão praticamente zeradas, confirmam fontes do governo.

No encontro com Wendy Sherman, o ministro argentino teria dito, segundo fontes, que o governo tem reservas para operar no mercado de câmbio nas próximas duas ou três semanas. A situação do BCRA ficou mais difícil pela decisão dos produtores rurais de reduzirem a liquidação de divisas de exportações, em um movimento especulativo, à espera de um retorno maior adiante. As divisas oriundas do setor agropecuário são essenciais para as operações do BC argentino.

No campo, os produtores argumentam que o governo faz o pagamento com base no dólar oficial (que tem a cotação mais baixa do mercado), e o custo dos insumos e das demais despesas sobe de acordo com a cotação do mercado paralelo — como a maioria dos produtos.

— Já podemos estimar que a produção total de grãos vai cair 34%, o que representa a perda de 45 milhões de toneladas — afirma Daniel Pelegrina, ex-presidente da Sociedade Rural, produtor agropecuário e consultor em agronegócios.

Ele lembra que, nos últimos 70 anos, a Argentina teve quatro períodos de três anos consecutivos de seca, e, em todos eles, houve desajustes macroeconômicos.

— No mercado bovino, 45% de nossas vacas foram afetadas pela seca, e não sabemos qual será a queda na produção de carne. Mas, no total, o país deixará de exportar US$ 21,6 bilhões em 2023 em produtos do agro — diz Pelegrina.

O ex-presidente da Sociedade Rural avalia que o problema é que a renda do produtor desabou 90%, enquanto os tributos caíram apenas 37%.

— O Estado tem instrumentos obsoletos para enfrentar perdas de tamanha magnitude. Nossa esperança, como produtores, está no futuro e em uma mudança de governo, que traga regras mais proativas. É muito difícil operar com estas variações do dólar — diz Pelegrina.

Panelas vazias

Com a combinação de crise econômica, financeira e política em ano de eleições, movimentos sociais têm protestado e fazem acampamento em Buenos Aires, em frente ao palácio de governo e ao Ministério do Desenvolvimento Social.

A fome é um problema nacional no país, que tem 39,2% de habitantes, ou 44 milhões, abaixo da linha de pobreza, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). Um dos protestos dos últimos dias foi batizado de “Panelas vazias”.

A crise atinge em cheio a classe média. O casal Analia Oreiro e Santiago Meirinhos decidiu pedir dinheiro emprestado a familiares para abrir uma segunda loja de produtos de jardinagem, mesmo diante do quadro de incertezas. Eles tentam ampliar a renda mensal para cobrir as despesas, cada dia mais altas, de uma família com três filhos pequenos.

— As pessoas dizem que estamos loucos, que não é momento de investir, mas não encontramos outra solução para aumentar a renda. Sabemos que é arriscado, mas como fazer quando o condomínio aumenta 40% de um mês para o outro? — pergunta Analia.

O casal, como muitos outros argentinos, pensa em emigrar, mas precisa finalizar a tramitação de um documento que permita residir em países da União Europeia (UE).

— Os produtos que vendemos são importados, e muitas vezes temos demoras de até seis meses. Os problemas são muitos, e tivemos de cortar gastos como comer fora. Também mudamos nossos filhos para uma escola mais econômica — conta Analia.

Com risco de ver sua economia ruir novamente, o país deverá decidir em seis meses quem herdará os problemas por resolver. Os nomes de Fernández e do ex-presidente Mauricio Macri não estão entre as opções.


Fonte: O GLOBO