Engenharia complexa envolvia uso de verbas publicitárias fictícias e ocultação de dívidas para mascarar manobras que inflaram resultado da empresa em R$ 25,3 bi

Fraudes inflaram o resultado da Americanas em R$ 25,3 bilhões. Isso foi feito principalmente utilizando contratos comerciais fictícios com fornecedores, por meio dos quais a companhia reduzia seus custos artificialmente e ampliava os lucros.

Ontem, a Americanas divulgou fato relevante para esclarecer os números que anunciara na véspera ao admitir, pela primeira vez, que a “inconsistência contábil" inicialmente calculada em R$ 20 bilhões é uma fraude, dando detalhes do esquema e acusando ex-diretores de envolvimento.

Com o comunicado ao mercado, foi apresentada uma série de detalhes e evidências que permitem reconstituir a engenharia complexa por trás de uma das maiores fraudes contábeis já descoberta em uma empresa listada na Bolsa e que levou uma das maiores varejistas do país à recuperação judicial com dívidas na casa dos R$ 40 bilhões.

Entenda as revelações no infográfico a seguir.

'Estarrecedor', diz especialista em auditoria

Em depoimento anteontem à CPI da Americanas, o atual CEO da empresa, Leonardo Coelho Pereira, citou as auditorias KPMG e PwC, responsáveis pela análise dos balanços financeiros. Na ponta, a fraude amplia lucros da empresa, contribuindo para pagamento de bônus a executivos e acionistas e resulta em menor recolhimento de impostos.

Para Eduardo Viana, sócio da autoria externa Russell Bedford Brasil, o relatório apresentado pela Americanas é “estarrecedor”.

— Não foi fato isolado da contabilidade. Passou por toda a empresa, pelas áreas estratégicas, operacionais, comerciais, pelo board, diretores, conselho. Estou chocado porque via a transformação (em exigência) de regras de maior rigidez e governança corporativa, e nada funcionou.

Lucro inflado por contratos fictícios

No caso da Americanas, o lucro foi inflado sobretudo pelo uso de contratos fictícios de verba de propaganda cooperada (VPC). Esses incentivos comerciais são prática recorrente no varejo. A varejista encomenda um volume de produtos do fabricante por um valor.

E coloca condições, como exposição privilegiada dos produtos nas lojas, e metas de comercialização. Ao cumprir essas metas, tem um desconto no valor devido ao fornecedor.

Entraram nesta conta R$ 3,6 bilhões em juros sobre operações financeiras que não foram lançados corretamente, daí alcançar R$ 25,3 bilhões. Ainda não há informação sobre por quanto tempo as fraudes foram praticadas.

— Os VPCs têm contratos e são registrados na contabilidade. E acabam contribuindo para um Ebitda maior, podendo inflar o resultado. Não é um processo que uma área possa fazer sozinha. E uma fraude de tantos bilhões, da noite para o dia, não ocorre sem ninguém ver. É um dos maiores pontos de controle de auditoria interna, de fraudes — avalia Ana Paula Tozzi, à frente da AGR Consultores focada no varejo.

Viana explica que essa operação de VPC melhora o resultado da companhia ao gerar uma recuperação de custo e reduzir o saldo do fornecedor, uma espécie de “duplo pênalti”. Já sobre o não lançamento de juros, ele diz que as empresas têm de trazer a valor presente as obrigações que têm com terceiros.

Empresa assume claramente que houve fraude

Os comunicados divulgados esta semana deixam claro como a Americanas operava a fraude. Até então, era sabido que a companhia usava outro mecanismo, o risco sacado, também comum no varejo, para maquiar seus números. Trata-se de triangulação no financiamento de fornecedores, na qual a varejista antecipa aos parceiros crédito que eles têm a receber via bancos.

Imaginava-se que, para não acender o alerta dos analistas sobre o tamanho dessas operações, a empresa aplicava redutores artificiais nessa rubrica de risco sacado. Agora está explicado que isso era feito por meio dos VPCs.

No balanço patrimonial, as operações com risco sacado somaram R$ 18,4 bilhões, mas teriam de ter sido lançadas como dívida, descritas como empréstimo e/ou financiamento. Em vez disso, foram lançadas numa conta transitória de fornecedores.

Capital de giro contabilizado indevidamente

Além do risco sacado, foram indevidamente contabilizados no balanço R$ 2,2 bilhões em capital de giro. “A incorreta contabilização das operações de financiamento de compras e de capital de giro minorou sua dívida financeira bruta (da Americanas) em R$ 20,6 bilhões”, diz o comunicado.

No balanço patrimonial, o valor lançado em VPCs fictícios é de R$ 17,7 bilhões, mais R$ 3,6 bilhões de juros lançados incorretamente. Fica claro que a soma compensa a outra.

O erro mais gritante, aponta Viana, é o do risco sacado na conta de fornecedores, por reduzir o endividamento:

— É um efeito severo para companhia, que tem dívida muito maior a ser paga. E a empresa foi sangrada. Não tinha esse caixa que foi distribuído em bônus e dividendos.

Questionado sobre se é possível uma fraude dessa magnitude não ser identificada, ele diz que há “linhas de defesa” nessa operação:

— Tem a controladoria interna, a gestão, inclusive da área de VPC, auditoria interna, auditoria externa. Como pode isso acontecer? Mas ninguém sabe ainda se isso foi visto, comunicado e diretoria e conselho tomaram outra decisão. A ponta do iceberg é como essa empresa gerou tantos dividendos e esses bônus.

Escrutínio na cúpula

No topo da companhia, conta uma fonte próxima às negociações, terá início agora escrutínio em decisões e operações para entender como uma fraude que pega o fluxo inteiro de contratos comerciais foi praticada sistematicamente.

— Tem a ver também com a cultura da empresa. Aqui no Brasil, temos uma “economia de ídolos”, que prejudica o mercado — diz Ana Paula.

Para Eduardo Yamashita, diretor de operações na Gouvêa Ecosystem, a atual gestão começa a reposicionar a companhia:

— Fica claro que é uma fraude sistêmica, sistemática, com múltiplas pessoas envolvidas. Mas, no varejo, o impacto foi sentido desde o anúncio do problema. O crédito ficou mais restrito e mais caro, o setor já vem pagando a conta. Na recuperação judicial, eventuais compradores de ativos da Americanas vão ficar com o pé mais atrás, tentar se blindar de passivos não claros.


Fonte: O GLOBO