Para combater o bullying nas escolas, o governo do Mato Grosso do Sul lançou mão de uma solução cirúrgica, mas que preocupa especialistas. 

O programa “MS Saúde: mais saúde, menos fila”, anunciado na segunda-feira, prevê, além de medidas para zerar a fila de espera por procedimentos eletivos, cirurgias plásticas pelo SUS para estudantes de escolas públicas ou privadas que sofram algum tipo de constrangimento com a aparência. Entre as intervenções possíveis, estariam rinoplastia, redução de mamas, em meninos ou meninas, otoplastia — indicada para as chamadas “orelhas de abano” — estrabismo e correção de cicatrizes.

Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) no Mato Grosso do Sul, Cesar Benavides afirma que a possibilidade de cirurgia reparadora é importante no debate sobre bullying. Mas ressalta que uma intervenção desse tipo deve ser tratada como a última opção para o problema, já que pode implicar até risco de vida. O especialista destaca que os jovens precisam passar por uma avaliação psicológica minuciosa antes de serem encaminhados para a mesa de operação.

— Existem alterações corporais que são motivo de bullying, como orelhas de abano, rapazes com seios grandes e meninas com mamas grandes e flácidas, parecidas com os de mulheres que já tiveram filhos. São mudanças que podem ter um impacto fulminante na autoestima dos adolescentes, faixa em que a personalidade está em formação. 

Mas é óbvio que somente cirurgia não é a solução definitiva — afirma o presidente em Mato Grosso do Sul da SBCP, entidade que até agora não foi procurada pelo governo para tratar do tema. — Há um conjunto de medidas que devem ser tomadas antes de se decidir por uma cirurgia, como avaliações psicológicas, porque muitos casos de bullying começam em casa, estão ligados à relação dos pais com os filhos, ao nível de educação da família e até mesmo a violências.

Benavides destaca ainda que há jovens que sofrem de dismorfobia, um transtorno psíquico que envolve desconforto com uma parte do corpo. Nesses casos, diz o médico, o jovem pode corrigir alguma alteração e depois passar a ter aversão a outra área. 

É um quadro em que o tratamento passa pela terapia, e não pela cirurgia. A obesidade em adolescentes, acrescenta o especialista, também é um caso em que quase sempre não é questão de cirurgia.

— Quando um adolescente obeso busca lipo, tem que se acender um sinal de alerta. O adolescente ainda está aprendendo a se cuidar, e a obesidade pode ter a ver com alimentação, falta de atividade física. Não é lipo que vai resolver algo que depende dele. 

Até porque depois ele poderá voltar a engordar — adverte Benavides, para quem a iniciativa do governo é louvável, mas toca em questões delicadas e deve envolver um trabalho com equipes multidisciplinares antes de diagnósticos finais.

Diferenças por idade

As operações reparadoras não se encaixam em todas as faixas de idade. O médico explica que crianças a partir dos 5 anos podem ser operadas para a correção de orelhas de abano, mas uma cirurgia de nariz só deve ser feita a partir dos 16 anos em meninas e dos 17 em meninos. 

Já intervenções em mamas são indicadas em casos de garotas que menstruaram pela primeira vez há dois anos ou mais e que sejam maiores de 16 anos, por causa do processo de desenvolvimento do corpo.

Na avaliação de Catarina Santos, professora da Faculdade de Educação da UnB, a solução oferecida no Mato Grosso do Sul não resolve o problema, e as questões de clima escolar e ainda cria novas complicações:

— É como se quisessem padronizar as características das pessoas. Combater o bullying requer trabalhar o respeito às diferenças e não a eliminação delas — avalia. — Entendo o bullying como o resultado de uma sociedade que estabeleceu padrões de corpos. 

O papel da política pública é trabalhar o respeito à diferença, a lógica da beleza da diferença. Quando se defende o combate ao bullying fazendo com que todos tenham as mesmas características, é um horror. Não é trabalho de combate à violência por conta das diferenças, mas de eliminar as diferenças.

O bullying é uma preocupação internacional. Finlândia e Canadá têm projetos reconhecidos como eficazes e trabalham mais com orientação das comunidades escolares e o desenvolvimento da cultura de paz.

Pesquisa do IBGE divulgada no ano passado mostra que o bullying é um problema grave entre os jovens. Um total de 40% dos estudantes brasileiros admitiram no levantamento já terem sofrido com as suas consequências no ambiente escolar, em episódios de provocação ou de intimidação. Além disso, 24,1% deles declararam sentirem que “a vida não vale a pena”, após terem sido vítimas.

Decisão individual

Para o governo do Mato Grosso do Sul, a iniciativa anunciada na segunda pode ajudar a conter a evasão escolar. O estado, no entanto, ainda não sabe como vai funcionar na prática o plano.

— Não podemos negar que esse problema existe. Mas, quando a gente dá acesso a cirurgias reparadoras, a decisão é individual. 

Não significa que as pessoas têm que fazer. É nossa função na saúde: dar oportunidade de acesso — diz Christine Maymone, secretária-adjunta de Saúde do Mato Grosso do Sul, acrescentando que forças de segurança do estado detectaram um aumento dos casos de bullying: foram 142 em 2022.

De acordo com Christine, os municípios têm até o fim desta semana para aderir ao projeto. São eles que vão elaborar a lista de pacientes que será enviada ao SUS. O governo depende também da definição sobre quais estabelecimentos de saúde farão parte do programa para fazer, então, o encaminhamento dos estudantes aptos.

— O estado está motivado em promover a inclusão — ressalta Christine.

* Davi Ferreira, estagiário sob a supervisão de Carla Rocha


Fonte: O GLOBO