Câmara aprovou medida que cria obrigações de transparência nas companhias e multas severas. Veja o potencial de a legislação fazer diferença no mercado de trabalho

Embora a Constituição já estabeleça que homens e mulheres têm direitos iguais, um levantamento do Dieese com base em dados do IBGE mostra que o rendimento médio mensal feminino é 21% menor que o masculino.

A Câmara dos Deputados aprovou ontem o Projeto de Lei da Igualdade Salarial, que institui medidas para garantir a isonomia remuneratória entre mulheres e homens na mesma função. Mas ainda há dúvidas sobre como a legislação vai alterar, na prática, o atual quadro desigual do mercado de trabalho.

O texto, que segue agora para o Senado, cria dois tipos de multa em caso de infração: uma a favor da vítima, equivalente a dez vezes a remuneração a que a trabalhadora teria direito — elevada em 100% em caso de reincidência — e outra para o governo, correspondente a 3% da folha de pagamento, limitada a cem salários mínimos, caso seja detectada discriminação contra mulheres nos relatórios enviados ao Ministério do Trabalho.

O projeto prevê que as companhias com mais de cem empregados precisarão encaminhar ao governo, a cada seis meses, balanços que comprovem a equidade remuneratória.

A proposta original enviada pelo governo estabelecia que, em caso de discriminação comprovada por motivo de gênero, raça ou etnia, além do pagamento das diferenças salariais devidas, seria estabelecida uma multa de dez vezes o maior salário pago na empresa, elevada em 100% em caso de reincidência. Este trecho recebeu críticas de diferentes deputados e segmentos e foi alterado.

Mas quais serão os parâmetros levados em conta na fiscalização? Especialistas ouvidas pelo GLOBO respondem a seguir.

Mecanismos de transparência favorecem fiscalização

Marina Novellino, advogada e mestre em Direito do Trabalho pela Uerj, começa pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a base das leis trabalhistas no país:

— Segundo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), um homem e uma mulher de mesma empresa e função há mais ou menos o mesmo tempo, com igual produtividade, devem ganhar o mesmo.

Para Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília, as normas da CLT e da legislação brasileira careciam de mecanismos de transparência e fiscalização, que constam no projeto de lei aprovado ontem pela Câmara. Ela considera o texto positivo por abrir o debate sobre a disparidade salarial entre homens e mulheres.

— O projeto foi aprovado com um percentual alto de votos (325 a 36) porque se conseguiu um texto bem aceito. Apesar da disputa quanto à agenda de gênero, a pauta da igualdade salarial é amplamente aceita, em diferentes setores políticos e ideológicos.

Atualmente, quando há discriminação, a lei estabelece um limite máximo para a multa de 50% dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). A nova legislação, se aprovada no Senado, criará uma penalidade muito maior.

Também deixará mais clara a possibilidade de pagamento de indenização por danos morais. No mais, a igualdade salarial será garantida por meio de mecanismos de fiscalização e transparência, como relatórios das empresas sobre a remuneração dos seus empregados.

Esses documentos devem conter dados que permitam aos fiscais compararem a remuneração das mulheres e dos homens, considerando a legislação de proteção a dados pessoais. Se as empresas não apresentarem o relatório, podem ser multadas em até 3% da folha de salários, considerando o limite de valor em cem salários mínimos.

Comitê terá representantes de 8 pastas

O Projeto de Lei da Igualdade Salarial é uma das medidas do pacote apresentado pelo governo federal no Dia Internacional da Mulher, onde consta também o Plano Nacional de Igualdade Salarial, Remuneratório e Laboral entre Mulheres e Homens, a ser elaborado por um grupo de trabalho anunciado no Dia do Trabalho, 1º de maio.

O comitê contará com representantes de oito ministérios e deve discutir uma estratégia de enfrentamento que observe condições e ambiente de trabalho, salários e oportunidades de ascensão profissional. A proposta prevê somente uma exceção às novas regras: nos casos em que o empregador adotar plano de cargos e salários, após negociação coletiva.

Problema vai além da equiparação

Margarita Olivera, do Instituto de Economia da UFRJ, diz que a proposta é interessante e acompanha precedentes sobre equidade salarial para o mesmo cargo em outros países. No entanto, ela ressalta que a proposta não resolve completamente o problema.

Margarita avalia que a proposta não resolve completamente o problema, em grande parte porque a diferença salarial entre homens e mulheres não se relaciona exclusivamente a trabalhadores ocupantes de um mesmo cargo. Mulheres têm menor chance de acessar cargos de liderança, que pagam os salários mais altos.

— As mulheres não conseguem acessar cargos de salários mais altos. Há uma segregação no mercado de trabalho que as restringe. Em geral, setores masculinizados têm salários mais altos e melhores condições de trabalho. Setores feminilizados, usualmente relacionados ao cuidado, têm salários menores — explicou a professora, que também é coordenadora de um curso de extensão de Estudos e Debates de Economia e Feminismos no IE/UFRJ.

Aplicação é mais importante que valor da multa

Flávia Biroli, da UnB, avalia que a diminuição no valor da multa em relação ao projeto inicial não é um problema e faz parte do processo de negociação política:

— A questão não é o valor da multa, mas sua aplicação. O projeto foi aprovado com um percentual alto de votos porque se conseguiu um texto bem aceito. O interessante é que, apesar da disputa existente quanto à agenda de gênero, a pauta da igualdade salarial é amplamente aceita, mesmo em diferentes setores políticos e ideológicos.

Segundo a especialista, há um conjunto de fatores que incidem diretamente nas oportunidades de trabalho, relacionadas até mesmo à disponibilidade das mulheres em procurar empregos ou disputarem cargos mais altos:

— Para ter igualdade salarial, precisamos investir em creches e jornadas de trabalho compatíveis com o funcionamento de creches e escolas. A gente opera uma rotina de trabalho que faz de conta que as pessoas não precisam adequar o trabalho remunerado ao não remunerado. 

E quem exerce o trabalho não remunerado são as mulheres, que cuidam das crianças, dos idosos e dos doentes. As mulheres têm níveis educacionais superiores aos dos homens. O que as diferencia no mercado são os ciclos de vida e o cuidado. Precisamos de políticas que não tratem a responsabilidade pelo cuidado como sendo das mulheres.



Fonte: O GLOBO