Partidos com ideias extremistas obtiveram quase um em cada quatro votos na legislatura e mais de 90 das 600 cadeiras na Câmara nas últimas eleições

A Europa tem se preocupado há anos com o surgimento de formações de extrema direita. Costumam ser um grupo ou dois, no máximo, com uma certa força em cada país. Porém, na Turquia é diferente: até cinco partidos desse tipo conseguiram bons resultados nas eleições de 14 de maio e podem marcar o futuro tanto do segundo turno das eleições presidenciais, que serão realizadas neste domingo, quanto dos próximos cinco anos. 

É o resultado do fato de que o governo de Recep Tayyip Erdogan, e também a oposição, passou anos explorando discursos típicos da extrema direita, o que acabou levando o debate a um quadro argumentativo favorável a essas formações.

O Hüda Par ("Partido de Deus"), herdeiro do grupo armado fundamentalista Hezbollah, conquistou quatro deputados nas listas do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan. O Partido da Prosperidade (YRP), também aliado do presidente, destacou-se durante a pandemia por seus protestos antivacinas. Agora, fez campanha exigindo a ilegalização das associações LGBTQIA+ e a mudança das leis que protegem as mulheres em caso de violência e divórcio.

Com este discurso, conquistou cinco deputados e, em algumas províncias, surpreendeu ao receber entre 8% e 10% dos votos. E os partidos de direita e ultradireita ligados ao movimento ultranacionalista Ülkücü (idealistas) obtiveram quase um em cada quatro votos na legislatura e mais de 90 das 600 cadeiras na Câmara.

Além disso, um representante dessa ideologia, Sinan Ogan, poderia fazer pender a balança no segundo turno das eleições presidenciais depois de receber 5% dos votos no primeiro turno liderando uma plataforma abertamente xenófoba.

De fato, em suas primeiras aparições após a votação do dia 14, aquele que será rival de Erdogan, o centro-esquerda Kemal Kılıçdaroğlu, abandonou a campanha positiva que o caracterizou até agora para adotar, como o presidente turco, uma retórica polarizadora, populista e ultranacionalista como forma de atrair o voto de Ogan e seus seguidores.

"É o Parlamento mais conservador e nacionalista da História", escreve o analista Murat Yetkin. Ele lembra também que, das 169 cadeiras conquistadas pelo Partido Republicano do Povo (CHP), de centro-esquerda, 34 irão para formações islâmicas ou islamoliberais separadas do AKP que haviam concorrido em suas listas como parte do pacto da aliança de oposição.

A Turquia sempre foi um país conservador com tendência para a direita: os partidos dessa tendência respondem por cerca de dois terços dos votos há décadas. Mas, nos últimos anos, grupos de extrema direita começaram a ganhar poder e influência à medida que seu discurso se normalizou e o apoio partidário de Erdogan por si só não foi suficiente para governar, dado seu declínio progressivo.

Se nas eleições presidenciais de 2014 Erdogan obteve 51,8% dos votos em uma candidatura apoiada apenas pelo AKP, em 2018 ele teve que se aliar ao Partido da Ação Nacionalista (o MHP, de extrema direita nacionalista) para sustentar sua vitória: obtendo 52,6% dos votos. 

E nas eleições deste ano, quando nas legislativas o seu partido obteve os piores resultados em duas décadas, a sua candidatura presidencial não só teve o apoio do AKP e do MHP, como teve de juntar o YRP, o Hüda Par e o Partido da Grande Unidade (BBP), todos eles islâmicos de extrema direita ou ultranacionalistas.

Se Erdogan revalidar a vitória presidencial no próximo domingo — obteve 49,5% no primeiro turno, ante 44,8% da aliança da oposição —, no Parlamento deve ter os deputados desses partidos para aprovar os orçamentos, por exemplo. E eles vão exigir uma compensação.

Preocupação no movimento feminista

No movimento feminista há uma grande preocupação com isso.

— Durante o governo do AKP-MHP, as mulheres sofreram inúmeros ataques. A Convenção de Istambul [contra a violência de gênero] foi cancelada, num país onde todos os dias duas mulheres são assassinadas por homens — denunciou Gülizar Ipek Bilek, da Plataforma das Mulheres para a Igualdade (Esik). 

— Mas com esses novos partidos um futuro ainda mais sombrio nos espera. Não acreditam em igualdade, não querem mulheres no espaço público, querem nos relegar para a cozinha. Eles querem nos transformar em um Irã ou um Afeganistão.

O Hüda Par, por exemplo, deu as boas-vindas ao porta-voz do governo talibã no ano passado e seus líderes se recusam até mesmo a apertar a mão de mulheres. O YRP também gerou polêmica durante a campanha quando, em um de seus veículos, a fotografia de uma candidata apareceu como uma simples silhueta negra, ao contrário de seus colegas homens.

— A Turquia está travada, como outros países europeus e os EUA, em brutais guerras culturais e Erdogan tentou galvanizar sua base com uma retórica divisiva sobre essas questões — diz Halil Yenigün, um acadêmico turco exilado e agora professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Porém, as bases "mais reacionárias" ainda estão insatisfeitas com as "relíquias de suas antigas políticas pró-mulheres", então, embora tenham votado em Erdogan nas eleições presidenciais, optaram por partidos mais radicais nas legislaturas.

É o mesmo que tem acontecido com o discurso cada vez mais nacionalista que o líder turco tem adotado desde que, em 2015, decidiu enterrar o processo de paz curdo, aliando-se ao MHP de extrema direita:

— Erdogan uniu símbolos religiosos e nacionalistas para mobilizar a população, demonizou os dissidentes, rotulando-os de terroristas a serviço do Ocidente e incitou a xenofobia — disse o acadêmico.

Isso permitiu que ele se mantivesse no poder, mas à custa de cada vez mais votos sendo transferidos de seu partido para o MHP.

Muitos ultranacionalistas, especialmente aqueles com tendência secular, não estão satisfeitos com esta aliança com Erdogan, então o movimento idealista sofreu várias divisões. O curioso é que essas rachaduras não diminuíram o suporte e, como se fossem esporos, germinaram em novos campos. 

A divisão principal, o IYI Parti (Partido do Bem), é a segunda força na aliança da oposição e, embora não seja propriamente uma formação extremista — apela para a centro-direita com a inclusão de figuras de renome internacional da economia e do setor da tecnologia — ajudou a normalizar os discursos "ülkücü".

— Mais do que votos, essas formações ganharam influência. Apesar de não serem partidos muito grandes, eles influenciaram o discurso e a ideologia tanto do governo quanto da oposição — explica Kemal Can, jornalista e cientista político especializado em nacionalismo.

Sob a influência do IYI, por exemplo, o Conselho da Cidade de Istambul, administrado pela oposição, nomeou um parque em homenagem a Nihal Atsiz, um ideólogo nacionalista de influência nazista que, na década de 1940, já foi julgado e condenado por racismo e por criticar o "tipo francês de nacionalismo" adotado na Turquia. Ele estava comprometido com um nacionalismo racial no qual nem judeus, nem negros, nem árabes, nem curdos podiam se encaixar.

A virada nacionalista de Kılıçdaroğlu


Os últimos discursos do centro-esquerda Kılıçdaroğlu para atrair o voto dos ultranacionalistas ao exagerar a situação e oferecer falsas informações sobre a imigração poderiam ter sido assinados pela ultradireitista francesa Marine Le Pen:

— Não abandonaremos nossa pátria a essa mentalidade que nos trouxe 10 milhões de refugiados irregulares. As fronteiras são nossa honra. Não abandonaremos a nossa pátria a quem, sem mexer um dedo, vê chegar aquela maré humana e se infiltra nas nossas veias com a esperança de que se tornem votos [para eles]. Amanhã não serão 10, mas 30 milhões e ameaçarão nossa sobrevivência.

O problema é que essa retórica de extrema direita não é descartável, mas uma vez usada, ela permeia a sociedade.

— Já vimos na Europa como, quando os partidos de centro adotam o discurso anti-imigração para tentar impedir o surgimento de movimentos neonazistas e de extrema direita, não apenas não os impedem, mas oficializam esse discurso que prepara o terreno para o florescimento desses movimentos — afirma Can.

Estudos sociológicos indicam que as ideias nacionalistas estão se espalhando entre a juventude turca.

— Erdogan falhou em criar aquela geração devota que ele desejava. A religiosidade não cresce entre os jovens, pelo contrário, cresce o nacionalismo através do sistema educacional e de um discurso que demoniza inúmeros "inimigos" internos e externos — critica Yenigün.

O acadêmico conclui que "na Turquia, o centro da política se deslocou ainda mais para a direita", tornando as posições anteriormente marginais parte do mainstream.


Fonte: O GLOBO