Em entrevista a O Globo, Mario Lubetkin afirmou que estabilidade política e busca pelo desenvolvimento contínuo são tão importantes para combater a fome quanto reservas de sementes e terras agricultáveis

Embora uma combinação explosiva de fatores, incluindo a guerra na Ucrânia, os efeitos econômicos da pandemia e a mudança climática, estejam pressionando populações ao redor do mundo com a sombra da fome, Mario Lubtekin prefere focar nas soluções. 

Representante da Agência da ONU para Alimentação e Agricultura (Fao) na América Latina e no Caribe, ele defende que a segurança alimentar só pode ser alcançada por um processo contínuo que envolve, além dos recursos e da capacidade de produção, a estabilidade política e a busca pelo desenvolvimento sustentável.

Em entrevista a O GLOBO na semana passada, Lubtekin comentou sobre a vinda ao Brasil nesta terça, para participar do lançamento de um projeto binacional de gestão de recursos hídricos entre o país e o Uruguai na Lagoa Mirim, projeto que recebeu financiamento de U$ 4,85 milhões (R$ 24 milhões) do Fundo Global para o Meio Ambiente e contrapartidas dos países envolvidos, e afirmou que em conversas pelo mundo tem defendido a tese de que sair do mapa da fome não é garantia de que um país superou o problema para sempre — citando o Brasil como exemplo de quem saiu, mas voltou para a ingrata lista com a mesma intensidade.

Qual a situação da América Latina e do Caribe com relação à fome e à segurança alimentar? Quais os indicadores hoje?

M.L. — A Fao calcula que o mundo tem mais de 830 milhões de pessoas que passam fome, mas há mais de dois bilhões que não se alimentam bem. Segurança alimentar não passa apenas por ter um prato de comida. Então existem questões de alimentação e nutrição, e precisamos de um modelo que nos permita avançar na quantidade e na qualidade.

Na América Latina, temos entre 56 e 57 milhões de pessoas que passam fome, e por volta de 135 milhões que não se alimentam bem. Em contrapartida, temos capacidade produtiva para alimentar 1,3 bilhão de pessoas, enquanto nossa população está na casa dos 700 mil. Deveríamos ter um acesso a alimentação enorme, mas, pelo contrário, a região tem um dos maiores custos de preço de alimentação de qualidade por pessoa.

Os últimos relatórios anuais publicados pela Fao apontavam o risco da volta/crescimento da fome com o avanço da pandemia da Covid-19. Apesar do fim da crise de saúde anunciado pela OMS, os efeitos econômicos dela ainda são sentidos?

M.L. — Se você analisar o cenário pré-Covid, tínhamos 43 milhões de pessoas com fome. Acabou a pandemia e temos mais de 56 milhões. Mas tem várias crises combinadas que tem que ser levadas em consideração. 

A gente vem de crises econômicas e desequilíbrios sociais, depois veio a Covid, a guerra na Ucrânia e vem cada vez com mais intensidade a questão da crise climática. Essa combinação tem um efeito explosivo para a questão da segurança alimentar. Tecnicamente a pandemia acabou, mas isso não significa que os efeitos econômicos da Covid acabaram.

Mas é preciso destacar que tendência de aumento ou diminuição da fome no mundo está muito relacionada com o que acontece nos grandes países. Quando o Brasil saiu do mapa da fome em 2014, por exemplo, fez os números gerais caírem junto. Agora a Índia começa a melhorar, e isso deve puxar os dados, mas só saberemos com certeza na próxima leitura.

O senhor mencionou a Guerra da Ucrânia como um desses fatores de 'efeito explosivo'. Como a crise na Europa refletiu na nossa região?

M.L. — O efeito da guerra pode ser visto por três fatores. Oitenta e cinco por cento do fertilizante utilizado na América Latina e no Caribe vem do que hoje são zonas de guerra (Rússia e Ucrânia). Entre 15 e 26 países, em maior ou menor grau, tem uma base de importação importante de cereais e milho que vem de lá. Se por um lado a Rússia não tem problemas na produção, tem problemas com as sanções, o que faz o produto chegar com um custo a mais para a gente.

Na Ucrânia, ainda se produz, mas quanto? Qual a parte da terra produtiva que foi destruída? Quanto está minado? Quantos produtores rurais deixaram o país? Isso não se sabe. E ainda há os problemas de exportação. O acordo de transporte do Mar Negro é hoje uma variável inflacionária importante para toda a América Latina e o Caribe.

A região sul do continente está passando por uma seca muito forte, em uma clara demonstração do desequilíbrio do regime de chuvas na região. Já existe algum prognóstico de como os eventos atuais vão afetar o continente?

M.L. — A mudança climática (já) é um fator econômico que desestabiliza tanto quanto os problemas de custo dos produto em função da guerra. Mas seus efeitos não são vistos apenas na América Latina. Isso também está acontecendo na Europa e em outras partes do mundo.

Mais do que focar no problema, estamos pensando em soluções. Nossos técnicos estão trabalhando para que não sejamos pegos de surpresa. No momento, estamos nos preparando para os efeitos do El Niño, que entre 2015 e 2016 afetou mais de 60 milhões de pessoas em 23 países — e se fala que neste ano vai ser pior. Estamos estabelecendo planos e protocolos para ações preventivas, e agilizando intervenções para, por exemplo, aumentar reservas estratégicas de alimentos.

O senhor mencionou os efeitos da pandemia, as previsões sobre o El Niño... mas qual a situação mais difícil no continente atualmente?

M.L. — Sem dúvida o Haiti. De longe. No Caribe, temos uma situação que é mais de qualidade, de nutrição, onde por falta de dinheiro as pessoas optam por alimentação menos nutritiva, o que tem gerado sobrepeso e obesidade. Claro que América Central e do Sul tem seus próprios problemas também.

A gente sabe que a gente não está bem, mas a questão não é essa. O desafio é achar soluções. O que a gente não pode é parar. Tem que continuar a se desenvolver, se não os resultados obtidos retrocedem diante dos novos fatores que vão surgindo.

O Brasil saiu do mapa da fome há alguns anos. Mas sair do mapa da fome não é o mesmo que permanecer fora dele com certeza. O Brasil saiu da fome e voltou para a fome, com os mesmos números, aproximadamente, de quando saiu, comparando 2023 e o processo de 2002 a 2014.

Falando em Brasil, o senhor vai estar nesta terça no Rio Grande do Sul, para o lançamento de um programa de gestão binacional da Lagoa Mirim, entre Brasil e Uruguai. Como a Fao avalia essa parceria?

M.L — Em um mundo tão complexo como o de hoje, o primeiro ponto é avaliar o que significa dois países, em um tema tão sensível como é água hoje em dia, proporem-se a ter uma gestão binacional na fronteira. Eu vejo como um elemento de cooperação e paz. Tudo o que parece normal e simples, não tem que ser visto assim [diante do contexto do mundo hoje]. Quantas guerras estão acontecendo na África por causa da água? Quantos pontos de conflito estão surgindo, até mesmo na nossa região?

Na relação entre Brasil e Uruguai, em geral, a fronteira é pacífica. Mas e se pensarmos em outras fronteiras na região, como Colômbia e Venezuela? Tudo o que aconteceu foi aqui perto e não era apenas um problema entre os dois países, era o cenário de desestabilização da região. Cada cenário fronteiriço que possa evoluir com uma gestão binacional traz estabilidade e desenvolvimento. Isso é paz.

E como o projeto contribui para a segurança alimentar?

M.L. — segurança alimentar é avaliada pela terra, pela água, pelas sementes, mas também pelos fatores de equilíbrio e estabilidade entre os países. 

No caso da Lagoa Mirim, que é a segunda maior do Brasil e a maior do Uruguai, desenvolver o circuito completo, ao se preocupar com a sustentabilidade e o desenvolvimento da região, melhora-se a vida das pessoas mais frágeis que vivem dela, como agricultores familiares. Se não os incluirmos no sistema produtivo, se alguma coisa acontecer, eles são os primeiros a serem lançados no cenário de pobreza e fome.


Fonte: O GLOBO