Menosprezada pelo movimento, questão prisional entra na agenda da extrema-direita após atentados

Assunto desprezado por Jair Bolsonaro, que já defendeu “entupir as cadeias de bandido” e chegou a classificar direitos humanos como “esterco da vagabundagem”, a questão carcerária se tornou uma pauta inesperada do bolsonarismo frente a prisão de mais de 1,1 mil extremistas envolvidos nos ataques terroristas do 8 de janeiro em Brasília.

A maior parte dos bolsonaristas presos no domingo segue concentrada no ginásio da Polícia Federal enquanto aguarda audiências de custódia e encaminhamento ao sistema penitenciário - como mostramos na última terça-feira, a população carcerária do Distrito Federal pode crescer 10% em função dos atentados.

A defesa fora do eixo não é por acaso. Isoladas politicamente em função dos ataques aos três poderes, lideranças bolsonaristas têm sido cobradas pela base, que teme ser abandonada em meio à responsabilização dos extremistas. A pressão vem, inclusive, de dentro do cárcere.

“Direitos humanos agora! Socorro, Damares! Socorro, Carla Zambelli! Michelle Bolsonaro, ‘te mexe’, mulher!”, grita uma mulher identificada nos grupos como uma das presas em Brasília em um banheiro com um aparente vazamento. “Aqui ninguém é milico para fazer treinamento de guerra. A gente não é treinado para ficar passando por isso. A gente precisa de respeito”.

Seja nos grupos de Telegram e WhatsApp ou nos discursos de parlamentares, ganhou força nos últimos três dias uma preocupação exacerbada com os presos, acompanhada da distorção da situação das instalações. Há desde falas sobre “condições sub-humanas” até comparações descabidas com campos de concentração nazistas, instrumentos do plano de extermínio do povo judeu pela Alemanha de Hitler.

O Ministério Público Federal (MPF) vistoriou as instalações da PF na manhã da última terça-feira, como revelou o portal G1, e desmentiu a versão bolsonarista de maus tratos ou de condições inadequadas para a permanência dos presos, além de assegurar que não havia crianças detidas no local, como se ventilou em grupos do Telegram.

Além disso, o Ministério de Direitos Humanos (MDH) divulgou nota na última quarta e afirmou estar em contato com a pasta da Justiça para monitorar as condições dos extremistas presos em Brasília.

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, usou a sessão do Senado que aprovou a intervenção federal no DF para defender que “mais de mil pessoas” estavam presas indevidamente e defendeu extremistas detidos no quartel-general do Exército, descritos por ele como “senhorinhas, idosos, pessoas com deficiência e crianças”.

O ex-vice-presidente e senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS) falou em pessoas “confinadas” sob “condições precárias” e de forma “amadora, desumana e ilegal”. Além disso, Mourão rejeitou a imputação de terrorismo aos extremistas que destruíram as sedes dos três poderes.

A deputada federal Bia Kicis (PL-DF) replicou mensagens comparando as instalações da PF a campos de concentração e compartilhou uma fake news sobre a morte de uma bolsonarista em custódia, atribuída falsamente à OAB. O governador bolsonarista de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), por sua vez, destacou uma equipe para monitorar a situação de catarinenses detidos em Brasília.

Apesar do alarde, os registros dos próprios presos nas instalações da PF, no entanto, contam uma história diferente. Boa parte deles ainda conseguia se comunicar com o mundo externo na última terça-feira, usando tomadas do próprio ginásio para carregar seus celulares, e dispunham de um espaço amplo entre a quadra e as arquibancadas - nada parecido com uma cela.

Outros continuaram a usar as redes para afrontar a Justiça e o Estado democrático de Direito, mesmo no cárcere. Receberam, ainda, a visita de bolsonaristas incendiários como o senador Marcos do Val (Podemos-ES) e o motorista de caminhão Ramiro Alves da Rocha Cruz Júnior, conhecido como Ramiro Caminhoneiro e filiado ao PL.

A situação levou, inclusive, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes a ironizar os detidos e comparar as instalações a uma “colônia de férias”.

As listas bolsonaristas no Telegram revelam, inclusive, cenas insólitas. Em uma delas, uma mulher de meia idade descreve com revolta a situação do cárcere: “Estamos praticamente presos aqui”, afirma a senhora, ignorando a detenção: “Não tem nem um café para a gente”.

Na campanha de 2018, Bolsonaro prometeu acabar com as audiências de custódia - etapa obrigatória no sistema prisional para a confirmação da necessidade da prisão e da integridade física do detido. O procedimento, adotado no caso dos bolsonaristas, levou o procurador-geral da República, Augusto Aras, a autorizar um reforço na equipe do Ministério Público do DF.

Além de casuística e amparada em boatos, a adesão bolsonarista à pauta carcerária tem se limitado ao contexto de seus pares. Não houve acenos nobres na direção do sistema prisional brasileiro, historicamente impactado pela superlotação e por violações de direitos humanos.

Nesse sentido, o MDH do governo Lula não perdeu a oportunidade de alfinetar a politização do tema pelos bolsonaristas. Ao reafirmar o monitoramento do tratamento dos presos, a pasta expressou “sua preocupação com todas as pessoas deste país que se encontram presas - sem exceção”, em sua maioria “pobres e desamparadas”.


Fonte: O GLOBO