Ex-presidente firmou, pouco mais de um ano antes da saída, um nebuloso acordo com o Talibã, e chegou a conversar com um representante da milícia que hoje controla o país

No terceiro dia da Convenção Nacional Republicana, que oficializou Donald Trump pela terceira vez como candidato do partido à Presidência, um dos eventos mais marcantes foi protagonizado por 13 famílias de militares que morreram na catastrófica retirada americana do Afeganistão, em agosto de 2021.

Com fotos dos parentes, eles evocaram cantos de “EUA, EUA” da plateia, contaram suas histórias e, especialmente, criticaram o presidente Joe Biden, até o momento o candidato democrata à reeleição.

— Olhe para nossos rostos. Veja nossa dor e nosso desgosto. E olhe para a nossa raiva. [A retirada do Afeganistão] não foi um sucesso extraordinário — disse Cheryl Juels, tia de Nicole Gee, uma das 13 vítimas militares dos EUA mortas em um atentado do lado de fora do aeroporto de Cabul, em agosto de 2021, que ainda matou 170 civis. —Joe Biden tem uma dívida de gratidão e um pedido de desculpas aos homens e mulheres que serviram no Afeganistão.

Christy Shamblin, madrasta de Gee, disse que Biden jamais disse os nomes de seus filhos, sobrinhos e enteados em público — apesar do democrata ter prestado algumas homenagens desde o ataque.

— Joe Biden se recusou a reconhecer seu sacrifício. Donald Trump sabe os nomes de todos eles. Ele conhece suas histórias — afirmou Shamblin sob aplausos.

O ataque no aeroporto de Cabul foi o capítulo mais grave de uma sequência de erros, fracassos e mortes no processo de saída dos Estados Unidos do Afeganistão, inicialmente previsto para maio daquele ano, mas adiado para o final de agosto.

Funcionários foram retirados às pressas, no momento em que as tropas do Talibã se aproximavam da capital e pareciam estar mais perto do que nunca de retomar o poder perdido após o início da guerra, em outubro de 2001. A confusão na emissão de vistos e permissões de saída para os afegãos que trabalharam para os EUA e aliados ao longo das últimas duas décadas provocou pânico generalizado: afinal, o retorno da milícia poderia significar a morte de todos que colaboraram “com as forças da invasão”.

Militante talibã ameaça pessoas que aguardam do lado de fora do aeroporto de Cabul, em agosto de 2021 — Foto: Jim Huylebroek/The New York Times

No aeroporto da capital afegã, milhares de pessoas se acotovelavam nos portões em busca de um lugar nas aeronaves militares, mesmo sem documentos — muitos não pensaram duas vezes antes de se lançar em um canal de esgoto que corria junto aos muros, para tentar chegar mais perto dos soldados que faziam a triagem.

Neste cenário de caos, o grupo terrorista Estado Islâmico lançou um de seus ataques mais violentos no país, com um homem-bomba detonando explosivos em uma das entradas do terminal, o Portão Abbey. Ao todo, 183 pessoas morreram, incluindo 170 civis e 13 militares. Em resposta, foram lançados ataques com drones contra posições do Estado Islãmico e contra a casa de uma família que tinha vistos americanos, deixando 10 mortos, entre eles 7 crianças.

Jamais foi feito um pedido de desculpas.

— Nenhum general foi demitido no momento mais embaraçoso da história do nosso país, o Afeganistão, onde deixamos para trás bilhões de dólares em equipamentos; perdemos 13 lindos soldados. E por falar nisso, também deixamos pessoas para trás. Deixamos os cidadãos americanos para trás — disse Donald Trump, durante o debate com Biden, no final de junho.

Milicianos observam civis entrando no aeroporto internacional de Cabul, em agosto de 2021 — Foto: WAKIL KOHSAR / AFP

Mas os republicanos parecem ter se esquecido, ou deliberadamente omitido, o papel de Trump. Um ano e meio antes, representantes dos EUA e do Talibã acertaram um acordo firmando um prazo para a saída das tropas americanas, estabelecendo que a segurança nacional estaria a cargo das forças afegãs, e determinando que a milícia iniciaria conversas para um cessar-fogo e a formação de um governo de união. Trump chegou a conversar por telefone com o principal negociador talibã, o mulá Abdul Ghani Baradar.

— Eles estão lidando com o Afeganistão, mas veremos o que acontece. Tivemos uma conversa muito boa com o líder do Talibã. Nós não queremos violência — disse Trump a repórteres em março de 2021.

Na prática, o Talibã deu início a uma rápida ofensiva que, em questão de meses, dominou quase todo o país, sem resistência, posicionando suas forças nos arredores de Cabul em agosto de 2021, quando os americanos estavam em meio à retirada.

Representantes dos EUA, Zalmay Khalilzad (E), e do Talibã, Abdul Ghani Baradar, assinam acordo em Doha, em fevereiro de 2020 — Foto: KARIM JAAFAR / AFP

Para analistas, além dos erros de planejamento de Biden, as muitas lacunas no acordo firmado por Trump permitiram o avanço da milícia e a catástrofe que se seguiu, com o país hoje de volta ao controle de um grupo fundamentalista que limita os direitos das mulheres e reprime boa parte da população, seguindo uma versão deturpada do islamismo.

— O acordo de Doha foi muito fraco, e os EUA deveriam ter obtido mais concessões do Talibã — disse à Associated Press Lisa Curtis, especialista em Afeganistão e integrante do Conselho de Segurança Nacional no governo Trump. — E foi uma negociação injusta, porque ninguém estava protegendo os interesses do governo afegão.

Curtis acredita que houve um excesso de otimismo nas intenções do Talibã de cumprir o que foi acordado. A percepção de que o governo do então presidente Ashraf Ghani foi escanteado no processo contribuiu, segundo ela, para que muitos funcionários da administração federal, incluindo o próprio Ghani, não pensassem duas vezes antes de fugir para o exterior.

Aliados de Biden também argumentam que Trump deixou o posto em janeiro de 2021 sem um plano estabelecido para a retirada.

Explosões provocadas por mísseis dos EUA em Bagdá, no início da Guerra do Iraque, em março de 2003 — Foto: KARIM JAAFAR / AFP

As citações ao Afeganistão pelos republicanos, de forma negativa, não deixam de carregar um simbolismo sobre a mudança no partido nas últimas duas décadas e meia. Em 2004, o então presidente George W. Bush, que ordenou a invasão do Afeganistão, foi aclamado na Convenção Nacional em Nova York justamente por ter iniciado o conflito que drenaria trilhões de dólares nos anos seguintes.

Bush também era celebrado pela invasão ao Iraque, iniciada em março de 2003, sob argumentos (falsos) de que o regime de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Saddam caiu naquele mesmo ano, o país se afundou em uma guerra civil e serviu como berço para o surgimento de organizações terroristas, como o Estado Islâmico.

Em seu discurso na quarta-feira, J.D. Vance, vice na chapa de Trump e que já lutou no país árabe, se referiu ao conflito como “desastroso”, e ressaltou o apoio de Biden, então senador, à invasão, que na época teve o aval…do próprio Trump.


Fonte: O GLOBO