Com estreia marcada para a próxima sexta, dia 7, musical conta ainda com Diego Martins, Verónica Valenttino e Wallie Ruy
A nova montagem brasileira do musical “Priscilla, a rainha do deserto” causou furor antes mesmo de existir. Ainda em março, quando o elenco foi anunciado, não passou incólume a presença do já veterano Reynaldo Gianecchini no papel da drag queen Mitzi Mitosis — uma das protagonistas. A internet ferveu em acusações de que Giane não teria estirpe para o personagem por não ter mantido relações explicitas com o movimento LGBTQIA+. Outros maldosamente decretaram que o ator não estaria apto a encarar bem um papel do quilate de Mitosis. A grita online, é evidente, atingiu o ator em cheio, que persistiu na montagem, mas precisou voltar à terapia para “organizar as ideias e sentir-se forte”, como ele mesmo diz.
Passado o episódio inicial, o artista dará ao mundo sua versão de Mitosis a partir do próximo dia 7, em temporada que se estende até setembro no Teatro Bradesco, em São Paulo. Sozinho, é evidente, ele não está. O trio potente que desabrava o deserto australiano embarcado no ônibus Priscilla — conforme conta a já celebre história criada pelo diretor e roteirista australiano Stephan Elliott — é completo por Diego Martins (sob a pele de Adam e sua drag Felícia) e mais a dupla Verónica Valenttino e Wallie Ruy (revezando-se no papel de Bernadette). E, se nas redes o clima foi bélico, entre o quarteto há uma visivel harmonia que desagua para trocas de olhares e tiradas constantes.
— É impossível não se apegar um ao outro e criar “coisinhas”, passamos todo o tempo junto, então a gente leva essa intimidade (do palco) para nossas vidas. Já temos muitas piadas internas e uns 77 grupos de WhatsApp. Não é querendo fazer relação com os “Laços de Família’ de Giane, é isso mesmo que estamos construíndo. Para fazer Priscilla, são necessários os vínculos afetivos — diverte-se Wallie.
Prova da sinergia emanada pelo espetáculo foi possível de ser vista em um dos ensaios que o GLOBO assistiu, antes da estreia. Logo após apresentar um de seus números solo, o megahit ‘True Colors’ de Cindy Lauper, Gianecchini quase rendeu-se às lágrimas, visivelmente emocionado. Ao concluir as duas tomadas de ensaio, foi prontamente abraçado e acariciado pelos colegas de palco que o esperavam. Entre eles, nenhuma palava precisou ser dita, os afagos deram conta do acolhimento necessário ao colega.
— Estamos fazendo a jornada junto aos personagens. Me emociono muito com ‘True Colors’, porque quero mostrar minhas verdadeiras cores sem medo de quem sou, quero deixar vir meu potencial, com acolhimento, afeto. Me sinto vitorioso por ter bancado meus medos, é tudo muito rico, aprendo muito. E quero honrar o mundo das drags e sua arte linda — diz Gianecchini. — Estou torcendo para dar conta de tudo direitinho.
Diego Martins como Adam: experiência performando como drag queen — Foto: Pedro Dimitrow
A atual montagem, sob direção de Mariano Detry (que também dirigiu as versões paulistanas de Chaplin e Escola do Rock), contam os artistas, não se prende aos detalhes espinhosos do roteiro original, de ao menos três décadas atrás (se considerarmos o lançamento do icônico filme em 1994, sem contar o musical lançado na Broadway em 2006). Foi preciso adaptar.
— A ideia é trazer esse musical para 2024. Não dá para dizer que ele envelheceu bem ou mal, mas a verdade é que as coisas precisam ser atualizadas, sobretudo na arte. Tivemos esse cuidado desde a primeira leitura do texto. Há aspectos que eram tratados de maneira diferente, mas sabemos que passaram-se 20 anos, olhamos com cuidado pra isso — explica Diego Martins, na pele do irreverente Adam e que deu vida ao elogiado personagem “Kelvinho” da novela "Terra e Paixão". — E temos ainda uma leitura brasileira, trouxemos um humor com nossas referências, nossos memes.
Entre as mudanças propostas pela equipe da montagem, por exemplo, foram banidas as piadas que incluem o “nome morto” da personagem Bernadette. E aqui cabe uma explicação: na história, Bernadette é uma mulher trans e, portanto, deve ser chamada com o nome que escolheu sob o gênero feminino e não por meio de sua denominação masculina de batismo. Trata-se de uma regra, considerando a população trans e travesti fora das telas, absolutamente primordial.
Véronica Valenttino: atriz premiada faz a travesti Bernadette — Foto: Pedro Dimitrow
A atual montagem de Priscilla, inclusive, é a primeira que se tem notícia de incluir duas travestis no papel de Bernadette. Algo que é bastante lembrado por Verónica Valenttino, uma de suas intérpretes e a primeira trans a ganhar o prêmio Shell de melhor atriz por seu trabalho no musical "Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, no ano passado.
— Falamos muito de representatividade em cena, no teatro e em tantos lugares, mas a grande preciosidade é a proporcionalidade. No musical temos eu, Wallie e mais a (atriz não-binária) Kaiala. Estar presente, mas sozinha, não garante que deixaremos de passar por coisas que nos tocam ou até nos magoam. Juntas nós nos nutrimos e, inclusive, visitamos outras referências trans brasileiras — diz Verónica. — Construir juntas é importantíssimo, até para fortalecer nossas presenças nesses espaços.
Maratona
Além de toda discussão (séria, diga-se de passagem) sobre diversidade que o musical evoca, os artistas tem se dedicado amplamente aos números musicais que 'Priscilla' requer em as suas montagens. Portanto, estão lá "I Will Survive", “I Say A Little Prayer”, “Can’t Get You Out Of My Head”, como manda o figurino. O icônico ônibus que dá nome a montagem, é evidente, estará ladeando todas as performances que se estendem ao longo de cerca de 2h30. A preparação para colocar a obra em pé, confessam os artistas, é uma maratona.
— A gente fica possuído, tudo ocorre bem rápido. Quem tem experiência se vira mais rápido, não é mesmo Diego, Verônica e Wallie? Eu estou sem o know-how. Não tem muito tempo não, amor. O processo é intenso e rápido, ainda bem que temos uma equipe incrível. É uma loucura — confessa Gianecchini.
Wallie Ruy é atriz trans que divide a personagem Bernadette com Verónica — Foto: Pedro Dimitrow
‘Supertrunfo’
Quando perguntado qual seria o trunfo da exibição da peça a um público que, aos poucos, tem recebido mais opções de tramas que abordam personagens LGBTQIA+, os atores juram que é na fusão de particularidades que o espetáculo brilha — assim como foi no filme de 1994.
— Diego é um grande trunfo por já fazer espetáculos drags no Brasil, um país que é referência mundial nessa arte. Temos duas travestis ocupando espaço e fazendo pela primeira vez a Bernadette. E podemos, ainda, pensar no Giane que mostra o quanto a sociedade, e uma estrutura midiática, é perversa que nos empurra a nos silenciar dentro de nossas experiências de vida. Esse é nosso supertrunfo — teoriza Wallie, que também é parte do célebre grupo do Teatro Oficina Uzyna Uzona. — Priscilla em 2024 nos dá possibilidade de nos conectarmos com nosso próprio eu.
Fonte: O GLOBO
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