Segundo monitoramento do CNJ, um terço dos estabelecimentos prisionais apresenta condições ruins ou péssimas

Em 2000, quando a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) começou a divulgar dados sobre população prisional no Brasil, existia um déficit de 97 mil vagas nos presídios. Mais de duas décadas depois, o problema se agravou, e hoje o déficit aumentou 70%: há 166 mil pessoas presas além da capacidade do sistema, segundo o último relatório disponível, de junho passado. O resultado é a falta de condições mínimas para o cumprimento das penas. O monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que um a cada três estabelecimentos prisionais no Brasil têm condições ruins ou péssimas.

Segundo especialistas, a superlotação é a principal causa das más condições nas unidades prisionais. Por causa da desproporção entre vagas e pessoas, surgem ou se intensificam efeitos como insuficiência de assistência médica, de acesso à água, de condições de sono e de alimentação adequada. Os ambientes superlotados ainda são propícios para proliferação de doenças, em especial respiratórias, como tuberculose, e entidades de direitos humanos acusam a recorrência de denúncias de torturas e castigos físicos e coletivos. A situação mais delicada é a do Piauí, seguido de Roraima e Pernambuco.

Ainda segundo o CNJ, existem 83.028 agentes penitenciários para um universo de 682.674 presos, uma média de oito presos por agente. Mas, de acordo com a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 2009, o mínimo deveria der de cinco presos por agente.

— Tudo de ruim começa muito pela superlotação. O ambiente fica insalubre e as pessoas mais expostas às doenças. Há, por exemplo, alto índice de tuberculose nos presídios. Mas já visitei unidade onde a máscara de nebulização era compartilhada entre os pressos. Se houvesse o número correto, haveria controle maior e os problemas diminuiriam — explica a defensora pública federal Letícia Torrano, secretária de atuação no Sistema Prisional (SASP), que chama a atenção para o alto número de presos provisórios (180 mil do total), aqueles que sequer receberam sentenças.

O último relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que compilou inspeções realizadas em 2022, ilustra grande parte desses problemas. No presídio de Uberlândia (MG), por exemplo, uma das unidades consideradas "péssimas" pelo CNJ, os peritos constataram uma série de violações. As celas eram superlotadas e "extremamente escuras e mal ventiladas", agravando as altas temperaturas do verão. Sobre a alimentação disponível, o relatório chega a apontar uma "situação de fome e má nutrição". Das quatro refeições supostamente disponíveis, a última é um pão entregue junto ao jantar e segundo presos e até servidores "não é incomum a alimentação chegar estragada, com insetos ou cruas".

Os problemas seguem no acesso à água, que era limitada e tinha aspecto sujo e na falta de limpeza dos espaços. Os presos também não possuíam peças de roupa suficientes e foi constada " a ocorrência reiterada de castigos coletivos". Muitas unidades de Minas não contavam com equipes de saúde e psicossociais completas e, com a insuficiência de defensores públicos, peritos encontraram diversos casos de "cadeias vencidas", quando alvarás de soltura haviam sido concedidos meses antes, mas não houve a devida comunicação.

— A superlotação também é um vetor que pode configurar tortura, porque ela acaba impactando todo a estrutura de funcionamento na unidade — afirma Ana Valeska, perita do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, que destaca como esse contexto favorece surgimento de rebeliões. - Essas violações geram tensionamentos que podem resultar em rebeliões. Falta de assistência de saúde adequada, por exemplo, é ponto forte de tensão. Por isso frisamos a importância das autoridades atenderem às recomendações.

Em outras inspeções que participou, Valeska conta ainda que é comum encontrar unidades sem estoque de medicação, apenas com dipirona disponível. As dietas especiais, por exemplo para pessoas diabéticas ou com alergias, raramente são atendidas. Outro problema comum é encontrar presos homens e mulheres no mesmo presídio, em alas diferentes, quando a legislação diz que deveria existir uma unidade para cada público.

— Maioria dos presídios foi feita para homens, não é um sistema pensado para receber mulheres, então na maioria elas sofrem ainda mais — explica a perita.

Em outubro do ano passado, o STF reconheceu, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, a existência da violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro. Com isso, o tribunal determinou a elaboração, em seis meses, de um plano especial para o controle da superlotação carcerária e para combater a má qualidade das prisões, pela União e estados.

Segundo as especialistas, as ações do governo costumam ser principalmente de construção de novas unidades, em vez de solucionar o “hiper encarceramento”. Em meio às más condições nas unidades, facções criminosas que atuam dentro dos presídios se fortalecem, já que acabam sendo a forma mais fácil para presos acessarem itens pessoais de higiene e melhor alimentação, além de outras comodidades.

— Um plano nacional tem que ser bem efetivo e atacar a superlotação. O Brasil prende muito e prende mal, essas pessoas vão sair da prisão sendo o reflexo do que tiveram lá dentro. Atualmente só enxugamos gelo, mas nada funciona. Não diminui a criminalidade — diz Torrano, que acrescenta enxergar vontade dos presos em trabalhar ou estudar dentro das unidades, mas faltam vagas.

As especialistas admitem que a pauta não tem grande aceitação social, mas que as condições dignas não são regalias, e sim direitos e deveres obrigatórios. Mas, na contramão dessa mentalidade, muitos projetos de lei vão sendo protocolados para que penas sejam aumentadas e benefícios na progressão de pena cortados.

— As pessoas perderam a liberdade, mas continuam com direito à saúde, à educação e a serem tratadas de maneira digna. Enquanto a sociedade não perceber isso, a gente estará à mercê de um grande caos que infelizmente sempre esperamos que aconteça no sistema prisional brasileiro. É uma panela de pressão sem válvula de escape — afirma Edna Jatobá, conselheira nacional dos Direitos Humanos.

Procurada, a Senappen não se manifestou.


Fonte: O GLOBO