Alto nível de judicialização já causa impacto até mesmo nas rotas das companhias

À espera de um pacote de socorro do governo e ainda afetadas pela turbulência nas finanças causada pela pandemia, as companhias aéreas estão voltando as atenções para um problema antigo do setor, mas que passou a pesar mais nas contas: o nível alto de judicialização no país.Nos cálculos da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), as três principais empresas — Gol, Latam e Azul — são obrigadas a reservar (provisionar) R$ 1 bilhão ao ano para honrar decisões judiciais.

O volume abrange desde processos motivados por aspectos de responsabilidade direta da empresa, como falhas na gestão ou no atendimento, até questões que fogem ao controle, como impacto de tempestades no funcionamento de um aeroporto, com atraso nos voos.

O tema chegou à Justiça de Nova York e é citado no processo de recuperação da Gol, como antecipou a coluna de Lauro Jardim, do GLOBO. A companhia provisiona R$ 420 milhões por ano para processos judiciais em geral, incluindo trabalhistas e fiscais.

Deste total, 65%, cerca de R$ 270 milhões, seriam relacionados a ações movidas por consumidores. No documento, a Gol afirma que não é capaz de mensurar quantos processos estão em curso diante “do número esmagador de reivindicações”.

Segundo a Latam, desde a pandemia, a judicialização tem aumentado. Só em 2023, o volume de processos contra a empresa cresceu 33% em relação ao ano anterior. Na comparação com 2019, antes da pandemia, a alta é de 37%. Nos cálculos da empresa, o gasto com processos é de R$ 350 milhões por ano. Considerando o número de passageiros, é como se cada bilhete embutisse R$ 10 em ações judiciais.

Com o aumento do volume de processos, ganhou espaço no mercado uma indústria da judicialização, com sites especializados em entrar com ações, além de alimentar um comércio paralelo de vouchers distribuídos pelas empresas para resolver queixas.

— O problema é que as empresas estão sendo condenadas por questões que não dependem delas, como o fechamento de um aeroporto por conta do mau tempo. Isso gera um custo adicional, não só com indenizações, mas com advogados e tempo empregado. Isso se reflete no preço das passagens e afasta companhias estrangeiras, como as de baixo custo, que estão acostumadas com outro tipo de modelo de negócio — diz o economista Cleveland Prates, professor da FGV-Law e ex-conselheiro do Cade (órgão de defesa da concorrência).

Com o sinal de alerta do impacto dos processos nas contas das empresas, a Abear, a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), a Alta (Associação Latino-americana de Transporte Aéreo) e a Jurcaib (que reúne as aéreas estrangeiras) firmaram uma parceria em dezembro com a Associação de Magistrados do Brasil (AMB) e a UnB para realizar um estudo sobre a judicialização no país.

Ele tem prazo de um ano para ser concluído e usará inteligência artificial para entender as causas do problema.

Menos voos para o Norte

Ainda sem respostas sobre a origem do problema, o volume de processos já causa impacto na malha aérea das empresas. Em Rondônia, Gol e Azul reduziram voos com o argumento de um volume desproporcional de ações no estado. Só a Azul foi alvo de 15 mil processos entre janeiro de 2022 e junho de 2023.

— Decisões judiciais têm ampliado os deveres das companhias aéreas para além do que é previsto pela regulação — afirma a presidente da Abear, Jurema Monteiro.

Um levantamento da Iata comparou o volume de ações das companhias estrangeiras em seus países e no Brasil. Antes da pandemia, empresas como Delta, United e American Airlines eram alvo de uma ação de indenização para cada 1,2 milhão de passageiros transportados nos EUA.

No Brasil, as três companhias enfrentam uma ação para cada 227 passageiros transportados. Executivos do setor afirmam que o quadro no Brasil se agravou desde a pandemia.

Na Latam, a operação brasileira responde por mais de 98% dos processos do grupo, apesar de ser responsável por 50% dos voos.

Em nota, a Azul destaca que, segundo dados da Iata, o Brasil representa 2,7% dos voos de todo o mundo, mas cerca de 98,5% das ações judiciais contra empresas aéreas.

Segundo o Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer), a explicação para o volume de processos descolado de outros mercados está em um entendimento jurídico preponderante nos tribunais do país de que falhas na prestação de serviço no setor aéreo geram dano moral presumido. Isso significa que não importa a motivação, o próprio fato — no caso, atraso ou cancelamento de voo — gera dano moral.

“As empresas estão sendo condenadas por questões que não dependem delas, como o fechamento de um aeroporto por conta do mau tempo. Isso gera um custo adicional, não só com indenizações, mas com advogados e tempo empregado. Isso se reflete no preço das passagens e afasta companhias estrangeiras, como as de baixo custo”. Cleveland Prates, professor da FGV-Law e ex-conselheiro do Cade.

No resto do mundo, predomina o entendimento de que o dever primário da companhia aérea é zelar pela segurança operacional, ou seja, a empresa não é punida por questões que fogem ao seu controle, como fechamento de aeroporto por fator meteorológico.

— Ninguém está falando que não se pode processar por dano moral. Mas o que acontece no Brasil é como um cheque em branco. Atrasou, vale indenização — explica Ricardo Bernardi, presidente do Ibaer.

Não é por falta de lei. Em 2020, a reforma do Código Brasileiro da Aeronáutica passou a dispor expressamente que o dano moral precisa ser comprovado — e não presumido. No ano anterior, uma decisão em segunda instância no Superior Tribunal de Justiça também foi na mesma linha.

— Lentamente vemos algumas câmaras começando a exigir comprovação de dano moral, sobretudo em São Paulo, mas o volume de processos na primeira instância não para de crescer — diz Bernardi.

Penas mais altas

O advogado especialista em Direito do Consumidor Gabriel Britto explica que o Brasil tem o amplo acesso à Justiça como garantia constitucional, diferentemente de outros países, onde os consumidores evitam entrar com ações judiciais para causas de baixo valor.

Segundo ele, o valor em danos morais decorrentes da condenação de uma companhia aérea geralmente é superior ao imposto a empresas de outros setores, como concessionárias de energia elétrica e operadoras de transporte urbano:

— Outros prestadores de serviços são menos onerados que empresas aéreas no Brasil. Isso acontece também porque os juízes sentem os problemas do serviço de transporte aéreo na pele. Eles não têm contato com empresas de transporte urbano. Por isso, as penalidades são altíssimas.

Já Igor Britto, diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), entende que o problema da judicialização decorre da negligência das empresas, que descumprem as regras da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac):

— As empresas reclamam porque foram condenadas. Se foram condenadas, fizeram algo errado. Os consumidores não judicializam mais as companhias aéreas do que outros setores da economia, como bancos, por exemplo.

O ambiente favorável no Judiciário levou ao surgimento de sites especializados em mover processos contra as empresas. Alguns oferecem até R$ 1 mil para adquirir direitos de consumidores que tiveram problemas com voos cancelados. Se ganham a ação, esses sites costumam embolsar algo entre R$ 8 mil e R$ 15 mil.

A Abear tem atuado com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para tentar coibir a atuação deles. Desde 2019, 46 sites foram desativados pela Justiça. Outros 19 seguem operando.

Para preservar o caixa, as companhias aéreas começaram a indenizar passageiros com vouchers — o que tem gerado um mercado paralelo, a exemplo do mercado de milhas, que também só existe no Brasil. No Facebook, há grupos de compra e venda de vouchers frequentados por advogados e agentes de viagem.

Diante da explosão dos processos, a política do voucher começa a ser revista. Quando anunciou o fim de voos de Porto Velho para Manaus e Cuiabá, a Azul declarou que não iria mais oferecê-los nos acordos judiciais. A Latam parou de oferecer vouchers em 2022. (Colaboraram Juliana Causin e Ana Flávia Pilar)


Fonte: O GLOBO