Concessionária quer instalar terminal em Montijo, área ambientalmente sensível no estuário do Rio Tejo. Comissão do governo defende outro local. Infraestrutura atual está saturada

Portugal passou 54 anos procurando um local adequado para construir um novo aeroporto internacional em Lisboa, a fim de remediar as deficiências do atual, que este ano foi novamente classificado como um dos piores do mundo, de acordo com um ranking divulgado há algumas semanas pela AirHelp, uma organização internacional de direitos dos passageiros que comparou 194 terminais.

Mas o Humberto Delgado é também um dos mais rentáveis da Europa, o que permitiu à empresa francesa Vinci, que assumiu a concessão de todos os aeroportos portugueses em 2012, amortizar em apenas uma década o que investiu na operação (€ 1,2 bilhão por 50 anos de gestão).

A privatização de todos os aeroportos de Portugal, realizada durante o governo do conservador Pedro Passos Coelho (PSD), também deu à Vinci um enorme poder sobre a escolha do novo terminal de Lisboa.

Disputa entre Alcochete e Montijo

Embora parecesse um capítulo resolvido com a escolha do aeródromo de Alcochete em uma resolução do governo socialista anterior, após a privatização, o interesse comercial da concessionária entrou em jogo na tomada de uma decisão estratégica para o país.

A Vinci optou pela base militar do Montijo, a 16 quilômetros do atual terminal, para complementar o Humberto Delgado. Essa solução dupla é, para a concessionária, a opção mais barata e rápida. A empresa se comprometeu a pagar pelas obras, estimadas em € 1,2 bilhão e com duração de 36 meses. O governo apoiou e foi em frente.

Só que Montijo tem sérios problemas ambientais, pois está localizado na reserva natural do estuário do Tejo e, além disso, foi vetado por dois prefeitos comunistas dos municípios afetados. Em 2021, a Autoridade Nacional de Aviação Civil desistiu da tramitação do projeto.

O cenário de 2022 parecia perfeito para resolver uma das maiores emergências de infraestrutura do país, juntamente com as conexões ferroviárias com a Espanha, depois de meio século, uma série de estudos e algumas mudanças de opinião. A urgência de resolver a saturação do aeroporto Humberto Delgado, que impede o aumento do tráfego aéreo e da receita do turismo, foi agravada pelo aumento da demanda após a pandemia.

Além disso, o governo socialista, com maioria absoluta, chegou a um acordo com o principal partido de oposição, o Partido Social Democrata (centro-direita), para que uma comissão técnica independente avaliasse as nove opções apresentadas.

No prazo previsto de um ano, a comissão independente entregou seu relatório, que propõe o campo de tiro de Alcochete. Eles destacaram como principais vantagens o fato de estar localizado em terras públicas que não precisam ser desapropriadas, ser grande o suficiente para acomodar várias pistas e a cidade aeroportuária que ele transportaria e já ter uma declaração ambiental favorável feita em 2010.

Em sua opinião, isso permitiria defender o hub internacional, promover a transição do tráfego ferroviário para o rodoviário com as novas conexões que incluem uma terceira ponte sobre o Tejo e se sustentar como uma opção de longo prazo, localizada a 22 quilômetros de Lisboa.

Os técnicos consideram o Montijo inviável por questões ambientais, aeronáuticas e econômicas.

- É uma solução de curto prazo que se esgota em 2038. O barato sai caro - afirmou Rosário Partidário, presidente da comissão.

Trabalho da comissão é contestado

A recepção polêmica do relatório aponta para mais atrasos na escolha do novo aeroporto. A estabilidade política existente foi abalada há um mês com a renúncia do primeiro-ministro, António Costa, e a convocação de eleições antecipadas para 10 de março.

Além disso, o pacto celebrado entre o PS e o PSD, que criou a expectativa de que não haveria mais controvérsia no tema, foi ignorado. E a concessionária Aeroportos de Portugal (ANA), controlada pela Vinci, contestou a escolha da comissão.

José Luís Arnaut, presidente da Ana, criticou o trabalho da comissão como "não independente" e "não técnico".

- É um projeto muito ambicioso, maior do que Frankfurt, com quatro pistas, mas a questão é quem paga por ele - disse Arnaut em uma entrevista na TVI, acrescentando que eles financiariam o Montijo, mas não Alcochete.

Esse projeto custaria cerca de € 8 bilhões (€ 3,2 bilhões para a primeira pista e sete anos de obras) e a comissão ressalta que esse dinheiro viria das receitas do aeroporto.

- Além disso, o Humberto Delgado é muito, muito rentável. É uma grande fonte de financiamento se houver interesse em utilizá-lo - respondeu a presidente da comissão ao jornal Público, onde lamentou que o Estado esteja "nas mãos da ANA".

Discussões desde 1969

Os inconvenientes do Humberto Delgado são reconhecidos por todos e há muito tempo. Ele fica dentro da cidade, com todos os riscos e inconvenientes que isso acarreta, e não tem espaço para crescer. Até mesmo a democracia e a ditadura concordaram com isso.

O primeiro gabinete para estudar um novo aeroporto foi criado em 1969, com Marcello Caetano (último presidente da ditadura) ainda no poder, e três anos depois emitiu um relatório recomendando a construção da infraestrutura em Rio Frio, ao sul do Tejo.

No caminho para isso, veio a Revolução dos Cravos, em 1974, que pavimentou a redemocratização do país. A questão foi retomada em 1999, com novos estudos e novas localizações, e atingiu um ponto de maturidade em 2007, com a contratação do Laboratório Nacional de Engenharia Civil para analisar duas localizações, Ota e Alcochete. Ao mesmo tempo, em um colóquio realizado na Assembleia da República, foram feitas advertências.

- O pior erro é fazer na segunda década do século XXI o aeroporto que devíamos ter feito na penúltima década do século XX - afirmou Augusto Mateus, antigo ministro da Economia do governo de António Guterres.

Aeroporto de Lisboa não tem espaço para crescer — Foto: Erik Knoef/Unsplash

Após o relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o governo do socialista José Sócrates aprovou uma resolução em 26 de maio de 2008 que estabeleceu o local do novo aeroporto de Lisboa no campo de tiro de Alcochete (que na verdade fica em Benavente, uma outra história). Todos os partidos, de esquerda e de direita, endossaram a decisão do Laboratório.

Em 2010, a declaração ambiental favorável para o novo aeroporto foi aprovada e, em 2011, a troika - entidade constituída pelo Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia para supervisionar os países em crise da zona do euro - chega a Portugal. Com a economia em ruínas, não era o momento para investimentos públicos. Começaram as privatizações das joias da república, incluindo a ANA, que foi entregue à Vinci.

O primeiro-ministro Passos Coelho cedeu aos desejos da empresa e concordou em avançar com um segundo terminal no Montijo. Seu sucessor, António Costa, respeitou essa abordagem e, em 2017, assinou um memorando de entendimento com a ANA para desenvolver o Montijo. Estava previsto que o trabalho seria executado pela Mota-Engil, parceira da Vinci na Lusoponte, a concessionária das duas pontes sobre o Tejo (Vasco da Gama e 25 de Abril) que canalizam todo o tráfego entre Lisboa e a margem sul.

Ecologistas e prefeitos comunistas conseguiram bloquear o projeto, que a concessionária definiu como sua proposta e que a comissão independente considera inviável. De momento, António Costa se despediu do cargo de primeiro-ministro com uma resolução que obriga a ANA a fazer melhorias no aeroporto Humberto Delgado.


Fonte: O GLOBO