Embora pisco seja típico de regiões secas, estiagens mais severas podem reduzir a produção nos próximos anos

É da terra onde chove apenas uma ou duas vezes por ano que sai a bebida mais tradicional do Chile — e não estamos falando do vinho chileno. As extensas plantações de uva nas regiões semidesérticas de Coquimbo e desérticas do Atacama dão origem ao pisco, um destilado ao qual se dedicam 1,5 mil agricultores do norte do Chile.

Os produtores locais da bebida contam que dia de chuva ou de neve é um dia de festa, já que a água é fundamental para as plantações de uvas destinadas ao pisco. A neve que se deposita na Cordilheira dos Andes, vista de todos os cantos dos vales, derrete ao longo do ano e abastece os rios das cidades, o que significa que só há abastecimento de água quando neva ou chove nas cordilheiras.

— Aqui, uma única chuva ou neve pode ser suficiente para salvar uma safra inteira — diz Jaime Campusano, proprietário do Pisco Waqar, localizado no Vale do Limarí.

Produzido a partir das variedades de uva Moscatel e Pedro Jímenez, o pisco é um destilado de sabor influenciado pelo solo e clima secos do Chile — Foto: Globo Rural

Produzido a partir das variedades de uva Moscatel e Pedro Jímenez, o pisco é um destilado de sabor influenciado pelo solo e clima secos do Chile. Ao todo, os produtores destinam 180 mil toneladas de uvas especialmente para a produção da bebida. Mas, com a ocorrência de estiagens cada vez mais severas, teme-se que o volume caia de maneira acentuada nos próximos anos.

A média anual de chuva em Coquimbo, região composta pelos vales do Elqui, Limarí e Choapa, é de 100 milímetros, mas 2023 foi ainda mais seco, segundo informações do Centro de Estudos Avançados em Zonas Áridas (Ceaza), instituição vinculada ao governo do Chile. 

Entre janeiro e novembro, choveu 19 milímetros em Elqui e 20 milímetros em Limarí, duas regiões fundamentais para o cultivo da uva destinada à produção do pisco.

A queda do índice de chuvas neste ano, reflexo direto do El Niño, é uma preocupação para a cadeia de produção da bebida porque pode afetar a produtividade das parreiras em 2024. Por outro lado, a escassez de chuva e o calor devem deixar as uvas mais doces.

— O estresse hídrico faz com que as uvas produzam menos bagas, e isso concentra mais o sabor da uva. Isso significa que quanto menos água, menos produtividade, mas mais sabor — diz Campusano.

Produtividade

Hoje, afirma ele, apenas grandes produtores têm capacidade de armazenar água para irrigar as parreiras e driblar a falta de chuva.

A região de Coquimbo só é altamente resistente aos períodos de seca porque tem oito grandes reservatórios de água espalhados pelos vales que são como lagos artificiais. Para os produtores que não têm seu lago particular, as represas construídas são essenciais.

Debaixo de um sol de 30°C, mesmo às 18h, e baixa umidade, Sebastián Munízaga, gerente do Pisco Los Nichos, a mais antiga pisqueira do Chile, fundada em 1868, afirma que o Vale do Elqui, entre a costa e as cordilheiras, é o lugar perfeito para se fazer pisco.

Ao todo, os produtores destinam 180 mil toneladas de uvas, colhidas em 6 mil, especialmente para a produção da bebida — Foto: Globo Rural

A água armazenada na área da Los Nichos deve ser suficiente para garantir a continuidade da produção no próximo ano, mas os fornecedores de Munízaga podem não ter a mesma sorte.

— Alguns produtores que me vendem as uvas podem ter problemas com produtividade, o que deixaria o produto mais caro. Com isso, os custos subiriam — conta.

Atualmente, a Los Nichos produz cerca de cem mil garrafas por ano, com distribuição em todo o Chile, e tenta explorar o mercado de exportações. Munízaga esteve no Brasil no fim de novembro em um encontro de negócios entre os países vizinhos.

— O Brasil tem potencial para ser um bom mercado para nós, porque tem produtos similares, como a cachaça. Mas é preciso fazer um trabalho importante de posicionar a categoria — afirma.

‘É como temperar’

Entre janeiro e setembro de 2023, as exportações de pisco do Chile renderam US$ 3 milhões (R$ 14,7 milhões). Os principais destinos foram República Tcheca, Alemanha e Estados Unidos, segundo a ProChile, uma espécie de versão chilena da Apex, a agência brasileira de promoção das exportações. Os embarques para o Brasil, o décimo principal comprador, somaram US$ 58 mil (R4 284 mil) nesse mesmo período, o que representou uma alta de 15,3% em relação ao mesmo intervalo de 2022.

Jorge Bertin, proprietário do Pisco Amauta, que produz 12 mil garrafas por ano, já espera uma colheita reduzida em 2024, mas destaca que a qualidade é primordial para ele e seus colegas.

— Produzir pisco é como cozinhar e temperar suas receitas. Depende qual é o seu estilo e o que você vai colocar na sua bebida para ela ter sabores e aromas — compara.

Ainda que na região de Coquimbo 53 mil hectares, de um total de 66 mil, sejam irrigados, a falta de água ainda é um grande problema. Com estresses hídricos cada vez mais potentes, o governo do Chile anunciou que aumentará o investimento em irrigação na área. Os desembolsos, que neste ano terão valor equivalente a R$ 68 milhões, passarão ao equivalente a R$ 110 milhões em 2024.

Pisco se destaca em Búzios

Em Búzios, na Região dos Lagos fluminense, um restaurante típico do Chile mostra como o pisco pode fazer a diferença para um negócio, mesmo tão longe do seu país de origem. De toda a clientela de Francia Zuñiga, proprietária do Chilenazo, 75% são chilenos, e todos fãs da bebida. Conquistar o paladar brasileiro ainda é um desafio:

— Os brasileiros não tomam tanto pisco. Pouca gente conhece a bebida, chega muito cara ao país.

A água é fundamental para as plantações de uvas destinadas ao pisco — Foto: Globo Rural

Segundo ela, as bebidas típicas do Brasil são sempre mais baratas que o pisco. Enquanto a caipirinha, por exemplo, custa R$ 18,90 no Chilenazo, um drinque com pisco sai por R$ 29,90.

— Mas todos os brasileiros que provam o pisco amam.


Fonte: O GLOBO