Uma das únicas maneiras realmente efetivas de salvar gerações é investir pesadamente no desenvolvimento infantil, principalmente nos primeiros anos. Mas, para isso, é necessário que este investimento seja multisetorial

Você lembra como foi sua primeira infância? Aquele período de bebê até os seis anos? Provavelmente só de alguns momentos a partir dos quatro anos, certo? Pois saiba que as suas células lembram de tudo, e estão programadas a carregar para sempre o que você recebeu (ou deixou de receber) nessa fase. Nosso futuro é definido em grande parte pelos estímulos e cuidados que recebemos nessa idade crucial.

Espero que suas lembranças sejam doces como devem ser, mas, infelizmente as estatísticas evidenciam como tratamos mal nossas crianças pequenas, e como precisamos agir com urgência. Estamos submetendo uma geração inteira à violência, à fome e ao baixo desenvolvimento cognitivo.

Segundo o relatório ‘II Vigisan – 2022’, o percentual de residências com crianças abaixo de 10 anos convivendo com a insegurança alimentar grave praticamente dobrou de 2020 para 2022, passando de 9,4% para 18% e, quando esses lares têm três ou mais pessoas com até 18 anos, o número sobe para 26%. Como eu sempre digo, a fome em crianças é urgente, pois é nesta fase que ela atinge o desenvolvimento cerebral e isso afetará o indivíduo para o resto de sua vida.

Os resultados da última avaliação internacional de aprendizado de crianças (PIRLS - Estudo Internacional de Progresso em Leitura) acenderam mais um sinal de alerta para a educação brasileira. O exame mostrou que uma grande parcela das nossas crianças (38%) está muito longe de alcançar habilidades necessárias para compreender um texto completo, tendo ficado abaixo do básico. A maioria delas (49%) ficou no nível básico ou intermediário de capacidades, e somente 13% alcançou o nível elevado ou avançado.

No setor da segurança, os mais jovens continuam sendo as principais vítimas da violência sexual e, destes, 10% dos que sofrem estupro são bebês e crianças com idade entre zero e 4 anos, totalizando mais de 7 mil notificações em 2022. Dá para acreditar? Os dados constam do Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança pública, cuja fundação que presido é uma das financiadoras.

E se a criança nascer entre os povos originários, suas chances de sobreviver são baixíssimas. Meninos e meninas indígenas têm 2,5 vezes mais risco de morrer antes de completar um ano, se comparado a outras crianças brasileiras.

Feita essa pequena radiografia, como podemos fazer para que o Brasil consiga romper este ciclo de pobreza? Programas multisetoriais intensivos na primeira infância têm muitos efeitos no longo prazo conforme analisa James Heckman, Nobel de Economia em 2000. Esses programas apresentam taxas de retorno de até 13% ao ano, que se acumulam ao longo do tempo e produzem um benefício até seis vezes maior que seu custo inicial.

Uma das únicas maneiras realmente efetivas de salvar gerações da pobreza, do subemprego e da criminalidade é investir pesadamente no desenvolvimento infantil, principalmente nos primeiros anos. Mas, para isso, é necessário que este investimento seja multisetorial, envolvendo saúde física e mental, habilidades cognitivas e socioemocionais.

Poderíamos usar as políticas públicas já existentes, mas que estão sob o comando de ministérios diferentes como Saúde, Educação e Assistência Social. Por exemplo: os programas de creches de qualidade, educação infantil, saúde da família com foco em desenvolvimento infantil da Criança Feliz, e ações de transferência de renda para infância remodelados em projetos multisetoriais, como os que são mostrados nos trabalhos de Heckman há mais de 20 anos.

Isso envolve uma mudança radical no modo de pensar e agir dos nossos governantes, pois os ministérios, como vemos, têm seus donos: os partidos políticos. E dificilmente quem está nas pastas consegue trabalhar em sinergia com os outros. Líderes empresariais, políticos e sociedade devem desempenhar um papel central, reunindo investimentos e esforços para erradicar a falta de recursos na infância.


Fonte: O GLOBO