O governo tem responsabilidade e deveria ter uma agência para cuidar do futebol. É papel da CBF fomentar o livre mercado

Você é um especialista em gestão do futebol e, amanhã ou depois, um investidor bate à sua porta com uma proposta: ele tem 40 milhões de euros, está a fim de comprar clubes e vai botar o dinheiro na sua mão. A decisão é tua. Ele confia. Só não esquece que ele espera ter retorno em cima desse aporte inicial, de preferência em taxa superior aos investimentos convencionais.

Especialista que é, você já sabe que o retorno pode vir de algumas formas. A mais comum é valorizar o clube para a revenda por um número maior do que aquele investimento inicial. Se o time que você monta leva a entidade da terceira para a primeira divisão, a receita aumenta, a projeção de fluxo de caixa também, quem sabe a revenda não sai por 120 milhões de euros? Três vezes mais.

Outro jeito de alcançar o retorno é por meio da formação e da venda de jogadores. Isto empresários do mundo da bola já fazem há algum tempo. Agora, você sabe, a tendência é compor multinacionais com clubes em diferentes países. Você encontra um talento no Brasil, investe na formação dele, leva para uma equipe na França, ganha minutagem na Europa, daqui a pouco vende para a Inglaterra.

Óbvio que a descrição até aqui está superficial, mas esta é mais ou menos a posição em que estiveram Roque Júnior e seus sócios, da empresa Convocados. E eles tomaram as decisões deles. A primeira foi comprar um clube em Portugal, o Anadia, na terceira divisão. A próxima, desde que eles consigam mais investimentos, é adquirir um clube na França. E o Brasil? Ficou lá no fim da fila.

Por que não o Brasil, já que temos tanto talento? Roque e Rodolfo Kussarev, que foi diretor do Red Bull Brasil e hoje encabeça o trabalho no Anadia, explicam que o caos brasileiro atrapalha. “É um mercado sem regulamentação, inseguro, com uma lei muito recente e números que não têm sentido”, disse Rodolfo no episódio mais recente do podcast que conduzo no ge . 

Voltemos à perspectiva anterior, com números hipotéticos. Teu investidor tem 40 milhões de euros, equivalentes a mais de R$ 200 milhões hoje em dia. Fortuna! Se você abre negociação com um dirigente da Série B, ele vai pedir R$ 100 milhões para vender o clube. E é só o começo. Você precisará investir em infraestrutura e atletas, pagar taxas e dívidas e completar o caixa.

Quando se põe item por item na planilha, você cai da cadeira. A federação já aumentou taxas para registrar o clube. A associação civil deixou um monte de esqueletos no armário —leia-se: dívidas que o due diligence pode ou não encontrar, mas elas vão achar você. As necessidades em termos de centro de treinamento e pessoal são óbvias e custam mais caro para você, que tem investidor “rico”.

E, se tudo der muito certo, você sobe para a primeira divisão e disputa a sobrevivência contra clubes que gastam à vontade, enquanto aplicam calotes em credores. Dirigentes que prometem salários três vezes mais altos do que podem pagar e saem impunes, porque não há fair play financeiro. Dá para fazer tudo com R$ 100 milhões? Quem faz conta sabe que o risco de quebrar é altíssimo.

É por essas e outras que perdemos investidores, como os representados por Roque e Rodolfo, para Portugal, França e Espanha — regulamentados e menos inflacionados. O governo brasileiro tem responsabilidade e deveria ter uma agência para cuidar do futebol. É papel da CBF fomentar o livre mercado. E os clubes? E a liga? Sem reformas estruturais, seguiremos


Fonte: O GLOBO