Para a diretora do Brics Policy Center, Ana Garcia, a guerra na Ucrânia revelou a potência da aliança entre Pequim e Moscou, capaz de impulsionar a ascensão global chinesa

O encontro do G20 terminou domingo com uma declaração unânime – uma vitória para o anfitrião Narendra Modi amplamente atribuída ao interesse dos Estados Unidos de fortalecer o aliado e isolar Pequim e Moscou, cujos presidente não compareceram à cúpula. 

A força da parceria China-Rússia “não estava dada” antes da invasão do território ucraniano e é combustível para a ascensão chinesa, diz a diretora do Brics Policy Center, Ana Garcia. Em entrevista ao GLOBO, ela explica que o desafio dos EUA será incorporar a linguagem do Sul Global e reinventar sua relevância geopolítica e a das instituições financeiras multilaterais lideradas por Washington.

Em Nova Délhi, o presidente americano, Joe Biden, falou de aumento do financiamento a países em desenvolvimento em reunião com a presença de Modi, e dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cyril Ramaphosa, da África do Sul – três integrantes do Brics, que o vice-conselheiro nacional de segurança americano, Jon Finer, chamou de “membros democráticos” do grupo [que inclui ainda China, Rússia e novas 6 nações incorporadas no mês passado].

 Biden também anunciou um acordo para desenvolver um corredor marítimo e ferroviário no Oriente Médio, que classificou como investimento regional capaz de “mudar o jogo”.

O jogo, no caso, inclui uma disputa comercial que envolve a imposição de tarifas a produtos chineses estratégicos e um contraponto à iniciativa chinesa conhecida como “Nova Rota da Seda”, que completou dez anos marcada pelo alto endividamento de países que buscaram incentivo para obras de infraestrutura e outras áreas de investimento chinês. Para a especialista, a mudança de postura dos EUA é para não deixar o Sul Global "sendo abocanhado pelos chineses” — turbinados pelo apetite expansionista de Moscou.

A cúpula do G20 mostrou que os EUA enxergam na aproximação com Índia um caminho promissor para contrapor China e Rússia?

A Índia tem um jogo geopolítico complexo e está tentando extrair proveito das tensões internacionais. Ela não é alinhada nem de um lado, nem de outro. Reafirmou a interlocução com os EUA, só que também é aliada da Rússia, compra o petróleo russo, ajudou a Rússia a não ficar totalmente isolada depois das sanções da guerra [na Ucrânia]. 

E os EUA procuram manter alguma influência tanto no espaço do G20, que é multilateral global, quanto na própria região asiática, com essa interlocução importante com a Índia, que faz parte do Quad [Diálogo de Segurança Quadrilateral] que é a articulação de segurança no Indo-Pacífico. Então não é só economia, é também articulação e parceria militar, em uma região diretamente relacionada à China.

Será que os EUA vão conseguir falar a língua do chamado Sul Global, tendo a Índia como guia?

Não é que eles estejam falando a língua do Sul Global, mas eles mudaram a retórica e a narrativa diante das grandes transformações que ocorreram nesses últimos tempos, culminando com essa cúpula do Brics na África do Sul. Eles precisam usar o termo Sul Global, que é algo totalmente novo para os americanos. 

Eles estão precisando se direcionar a essa narrativa das demandas de desenvolvimento, das reformas das instituições existentes, Banco Mundial e FMI, para salvar a relevância dessas instituições, no momento em que a China se torna uma provedora de crédito internacional. Eles precisam sair da relação transatlântica tradicional [Europa e Japão] e se voltar também para o Sul Global, para não deixar o espaço vazio sendo abocanhado pelos chineses e, agora, com a presença maior da Rússia.

A Casa Branca defendeu recentemente reformas no FMI para fazer frente aos “empréstimos insustentáveis e coercivos” oferecidos por Pequim...

É uma grande encruzilhada porque os países mais pobres estão endividados com a China e vem quebrando, principalmente na África. E aí o FMI fica numa situação de, ou socorrer esses países sabendo que vão pagar seu credor principal [China], ou deixar quebrarem. As duas situações são ruins do ponto de vista dos EUA, porque, dependendo do país, se ele quebra, o efeito não é tão grande, mas se isso ocorrer em massa vai haver um efeito cascata. 

O FMI, em teoria, não pode deixar uma desestabilização do sistema financeiro internacional ocorrer. Eles estão buscando se legitimar junto aos países em desenvolvimento, atendendo à demanda histórica por uma reforma no fundo, mas não é apenas uma reforma de cotas, mas das regras e normas com as quais o fundo lida com os países em crise.

E dá para pensar que isso ocorrerá dessa vez?

Isso o Biden não está propondo necessariamente. Aqui há uma narrativa muito forte para contrapor a China, mas, na prática, o que que isso vai significar é ainda inconcluso. A demanda pela reforma vem da crise de 2008. Eles negaram e, agora, estão se vendo presos porque a China foi caminhar pela via bilateral. Com isso, o Fundo perde importância. Você vai ter, além da relação bilateral dos credores emergentes, novas instituições financeiras multilaterais. Então, aqui a grande tentativa não é de resgate dos países endividados, mas de resgate do FMI como ator relevante na arquitetura financeira global.

Na cúpula do Brics, no mês passado, Índia e Brasil acabaram vencidos pela posição de China e Rússia que levou à ampliação do bloco. Essa é uma estratégia eficaz para os objetivos expansionistas de Pequim?

O Brics ampliado é um Brics que ampliou sua base fóssil. Você pode dizer que o Irã é um pária, mas o Irã é um grande produtor de petróleo, e tem capacidade de enriquecimento de urânio, não é qualquer país. E os Emirados Árabes e a Arábia Saudita, que foi a grande questão, porque Riad é um parceiro histórico dos EUA. 

E a China mediou as relações entre iranianos e sauditas, que não tinham relações diplomáticas e voltaram a ter sob mediação chinesa, há alguns meses atrás. Foi muito estratégico trazer esses dois países. O resto vem a reboque.

Tem a Etiópia, que entrou no Brics e é a sede da União Africana, bloco regional que acabou de virar membro permanente do G20...

A África hoje está no centro da estratégia chinesa, tendo em vista a área de livre comércio continental. E a presença da China na África é massiva, gigantesca, absolutamente dominante. [A ampliação do Brics] É sim uma estratégia muito moldada pela ascensão chinesa e os americanos estão muito frágeis.

 Eles obviamente têm um poder tecnológico e militar gigantesco, mas não estão conseguindo mais agir com poder de conhecimento, com ideias de força — direitos humanos, democracia. E a gente vai tendo um país “revisionista”, a China, que é agora fortalecida pela Rússia. Essa união China-Rússia não estava dada até a [guerra na] Ucrânia, agora ela está e isso agregou muito à ascensão chinesa.

O que esperar da presidência brasileira do G20?

O Lula já deu o tom da agenda, que vai manter o combate às desigualdades e à fome, às mudanças climáticas, também com olhar para os territórios, a chamada bioeconomia. E a reforma da governança global, porque o tema chave do G20, desde 2008, é a reforma das instituições financeiras multilaterais. O quanto isso vai avançar é que é outra história. Vamos ver a capacidade do Brasil de articular e avançar na agenda ambiental, que é a grande marca internacional do Brasil com a Amazônia.


Fonte: O GLOBO