O mestre de obras Flávio Silva, de 62 anos, integrante do conselho de familiares de vítimas, relembra último momento com a filha Andrielle, morta na tragédia

“Dias antes da sessão no STJ (no último dia 5, o Superior Tribunal de Justiça manteve a anulação do júri que condenou quatro réus pela tragédia da Kiss), levei um tombo feio da escada. Fui a Brasília de muletas. Jamais deixaria de ir em um julgamento tão importante. Nossa esperança era que o caminho da justiça fosse retomado, mas fomos pegos de surpresa. Foi como se enfiassem uma faca no nosso peito. E aquela ferida abriu novamente. Voltamos para Santa Maria decepcionados. Mas já caímos algumas vezes e vamos retomar a luta. Só assim vamos conseguir justiça para esse assassinato em massa na Boate Kiss.

No Brasil, há muitos falsos empresários da noite que querem montar uma danceteria e que, num passe de mágica, conseguem a documentação. O poder econômico acaba mais valorizado do que a vida. Claro que a punição não vai trazer minha filha de volta. 

Mas o que tentamos é evitar que outras pessoas passem por essa dor desesperadora, que dura até hoje. Nosso ganho é assegurar à juventude que ela pode, sim, entrar numa discoteca para se divertir sabendo que o ente público garante a segurança dela.

Os jovens têm direito à vida, a sair, se divertir. Infelizmente, não foi o que aconteceu com a minha filha Andrielle. Naquela noite, ela foi comemorar o aniversário na boate. Estava fazendo 22 anos. E ela e as amigas pagaram o ingresso mais caro que existe no mundo, que é a vida. 

Penso sempre nos donos da boate quando alguém fala que eles não têm mais vida social, que sofrem, choram. São de família com dinheiro, podem se reconstruir, construir outra casa. Mas a vida da minha filha não tem como. Eu faria tudo, daria a minha vida para minha esposa e minha outra filha (hoje com 27 anos) a terem de volta. Mas isso não é possível.

Tem gente que diz que a condenação deles (dos empresários e sócios da discoteca, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor musical Luciano Bonilha Leão, em julgamento de 2021) foi vingança, não foi justiça. 

Se eu quisesse vingança, não ia perder dez anos da minha vida aguardando o julgamento. Temos esperança na reversão desse resultado e que esse júri tenha sua validade determinada pelo STF. Não temos mais condições físicas nem psicológicas de esperar tanto tempo.

Andrielle comemorava os 22 anos na Kiss: uma das 242 vítimas fatais da tragédia — Foto: Arquivo pessoal

Última conversa em churrasco

Na minha casa só não falamos sobre a minha filha nas horas em que conseguimos dormir. Muitas pessoas dizem: ‘Vocês têm que esquecer’. Que mãe que perdeu um filho quer esquecer?

Minha filha fez aniversário no dia 24 (de janeiro). No verão costumávamos improvisar um churrasco no gramado, com aquelas churrasqueiras de tijolo. É a lembrança da minha última noite com ela. Era uma quinta-feira. 

Compramos galetos, eu temperei, minha filha cortou a grama, montou a churrasqueira. Foi a última vez que conversei com ela. Eu estava terminando uma obra, trabalhei sexta até tarde da noite, e ela já tinha ido para o aniversário de uma amiga em outra boate. No sábado, também trabalhei até de noite, e quando cheguei ela tinha saído. Para a Kiss.

Só lembro quando tocou o telefone, cinco da manhã de domingo. Era uma menina. ‘Tio Flávio, houve um princípio de incêndio na Kiss, eu tô tentando achar as gurias e não consigo. Sei que elas estão bem, mas nenhuma delas atende’. Falei: ‘Tô indo praí’. E naquilo minha filha mais nova ligou o computador e já tinha mais de 30 vítimas. Eu botava roupa, tirava roupa. Estávamos bem desorientados.

Não conseguíamos chegar perto da Kiss. Encontrei um rapaz da Polícia Federal, eu fazia muito serviço para o pai dele. Ele perguntou o que eu fazia ali. Disse que minha filha estava na boate e que não conseguíamos localizá-la. 

Ele me chamou e entramos no pavilhão. Andamos entre as vítimas. Uma menina tinha um furo no rosto, não sei se era pisada de algum salto. Só pedi a Deus: ‘Por favor, Senhor, não deixa eu passar pela minha filha sem reconhecê-la’. Eu sabia que, quando achassem uma das amigas dela, achariam as outras. Até que veio o nome de uma.

Entrei para fazer o reconhecimento. Sabe, no verão, minha filha não gostava de secar o cabelo com secador. Então ela enrolava o cabelo comprido na toalha. Quando coloquei o olho nela, parecia que estava a vendo deitada com aquele toalhão na cama e o cabelo molhado. Aquela cena nunca mais vai sair da minha cabeça. Eu só queria tirá-la dali.

A ganância e a irresponsabilidade dos empresários tiraram a vida dos nossos filhos. E o poder judiciário tirou dez anos da nossa vida, com questões processuais, atrasos, tantos recursos. Tivemos que aprender ‘juridiquês’ na marra. Enquanto sociedade, temos o direito de discordar, lutar. Já me perguntaram se não tenho medo. Mas, depois que tiraram a vida da minha filha, não tenho medo de mais nada. O único que pode fazer que minha caminhada seja interrompida antes da hora é Deus.

Estamos morrendo dia a dia nesses últimos dez anos. Há um mês, morreu o décimo pai de vítima da tragédia. Era pai de uma amiga da minha filha. Taxista, estava ajudando uma cliente a tirar as compras do carrinho e colocar no táxi e simplesmente caiu morto, aos pés dela. Isso nos abala terrivelmente. E nos perguntamos quem será o próximo de nós. Quem não vai estar vivo para ver o desfecho dessa luta na Justiça?

Nas vésperas da realização do júri, tive problemas no coração, que deu sinais que não estava acompanhando o ritmo. Tive que fazer tratamento. Minha esposa e minha filha se preocupam. Mas isso também não pode nos assombrar. Quem sabe a hora da batalha final é Deus. E espero que ele tenha compaixão de nós e nos deixe realizar essa missão, que é árdua e injusta. Vamos até o fim”.

*Em depoimento à repórter Elisa Martins


Fonte: O GLOBO