Em meio à polêmica sobre recusa de livros do MEC e material 100% digital, professores afirmam que escolas não receberam nem material próprio do governo paulista do segundo semestre

Em meio à recusa de livros didáticos do Ministério da Educação (MEC) e à polêmica sobre a adoção de material 100% digital na rede estadual de ensino de São Paulo, professores e pais de alunos afirmam que escolas não receberam ainda nem os livros impressos do currículo do governo paulista para o segundo semestre de 2023, embora as aulas já tenham recomeçado há quase duas semanas.

O currículo paulista contempla o uso de apostilas próprias da Secretaria Estadual de Educação, além de slides e outros materiais digitais produzidos pelo Centro de Mídias, ligado à pasta. Na semana passada, o secretário de Educação, Renato Feder, anunciou que o estado passaria a usar apenas esse material próprio nas escolas, recusando quase dez milhões de livros do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), distribuídos gratuitamente pelo MEC.

Na ocasião, Feder chegou a dizer que o material usado no estado, além de próprio, passaria a ser 100% digital. Diante da repercussão negativa, o governador Tarcisio de Freitas anunciou, no fim de semana, que o estado imprimiria, sim, o material do 6º ao 9º ano — embora a não adesão aos livros didáticos do MEC tenha sido mantida.

Ambas as decisões — a de recusa do PNLD e uso de material 100% digital — valeriam apenas a partir de 2024. Mas professores e alunos reclamam que falta material impresso para os alunos acompanharem as aulas já agora.

Em Jaú, no interior de São Paulo, a mãe de um aluno de 13 anos diz que a professora sugeriu formar um grupo de mães para que elas mesmas imprimam o material em casa, "porque agora não tem mais livro, é só slide".

— Fui chamada para uma reunião na escola, e a professora disse que meu filho precisaria prestar mais atenção nas aulas, senão ele não conseguiria fazer os exercícios, porque agora não tinha mais livros. E sugeriu montar um grupo de WhatsApp com as mães para imprimirmos em casa o conteúdo dos slides da escola — conta a comerciante Ana Paula Camargo, de 42 anos, mãe de um menino de 13 anos.

Na hora, diz a mãe, ela não questionou, porque estava preocupada com a aprendizagem do filho, que "é bem disperso":

— Depois que me dei conta: como assim vou ter que imprimir, se tem livro na escola? Pois não tem. Eles ficam copiando os slides no caderno. E há algumas folhas de exercícios que a escola imprimiu e colaram no caderno.

Os livros do material próprio do governo paulista que estão em casa, diz Ana, são todos relativos ao primeiro semestre.

— Meu filho fazia os exercícios nesses livros. Agora não tem nada do segundo semestre — conta. — Ele já não tem muita iniciativa de estudar, eu e meu marido temos que pegar no pé o tempo todo. Agora vai piorar.

Na capital paulista, o vice-diretor de outra escola estadual diz que a instituição costumava receber o material impresso do currículo paulista antes ou durante as férias. Mas que, neste ano, ainda não chegaram os do segundo semestre.

— Livro físico, oficialmente, nenhum. Os professores estão se virando, sem prognóstico — diz ele, que prefere o anonimato. — Seguem as aulinhas feitas por slide e as gravadas pelo Centro de Mídias (do governo paulista).

Uma diretora de outra escola, que também não recebeu o material paulista impresso do segundo semestre, diz que os professores já não têm expectativa sobre a chegada dos livros:

— Não chegarão. Temos os livros do PNLD que já estavam na escola.

Procurada, a secretaria informou que os livros físicos “permanecem em todos os ciclos do ensino: fundamental anos iniciais (1º ao 5º ano), anos finais (6º ao 9º ano) e ensino médio” e que “nenhum aluno ficará sem livro”. Porém, os alunos dos anos finais do ensino fundamental não contarão com livro didático impresso de estudos do chamado “currículo em ação”. Para este segundo semestre, diz a secretaria, terão material didático digital e os livros do PNLD. A partir de 2024, os alunos desta faixa voltarão a receber o material impresso do currículo paulista.

Imprimir só não resolve

Os relatos sobre a falta de material impresso nas escolas são parte de um problema mais amplo. Mesmo impresso, dizem especialistas, o material do governo paulista não resolve a ausência dos livros didáticos.

— São instrumentos pedagógicos diferentes. Um não substitui o outro — diz uma diretora de escola.

Para especialistas, são os livros didáticos que aprofundam o conteúdo para os estudantes.

— Recusar livros entregues no prazo, escolhidos por professores e extensivamente estudados e analisados, como no caso do PNLD, não é um detalhe. E várias pesquisas mostram que a principal fonte de conhecimento do estudante nas escolas é o livro didático. Não é celular, tablet, nem plataforma digital. Isso vai na contramão do que se faz no mundo — afirma Fernando Cássio, professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.

A nova polêmica reforça duas tendências já apontadas da gestão educacional de São Paulo: o afastamento da política conduzida pelo MEC (o que já aconteceu no caso das escolas cívico-militares e do Novo Ensino Médio) e o perfil centralizador das estratégias pedagógicas na secretaria.

Na segunda-feira, o secretário de educação Renato Feder defendeu a utilização de material próprio do governo paulista por ser “consumível” pelo aluno e para evitar "dupla orientação" de ensino na rede com os livros propostos pelo Ministério da Educação (MEC).

— Esse material (do governo paulista) é consumível. O aluno escreve, grifa, anota, rabisca aqui. E os livros do PNLD não são consumíveis no ciclo que estamos falando, nos anos finais do (ensino) Fundamental. O aluno tem que guardar, não pode anotar, guardar, circular, porque esse livro tem que estar disponibilizado para o ano que vem — disse em encontro com jornalistas na sede da secretaria, no Centro de São Paulo.

Outro argumento que pesou para o governo paulista recusar os livros didáticos enviados gratuitamente pelo MEC, disse, veio do fato de não querer passar uma "dupla orientação" nas diretrizes de ensino às escolas.

— Não queremos passar uma dupla orientação. Isso não vai ajudar, na nossa visão. Tirando as obras literárias, no PNLD cada escola escolhe seus livros. Então cinco escolas podem ter cinco livros diferentes. Imagina um professor que dá aula em três escolas. 

Tem que se adequar ao livro 1, livro 2, livro 3, e nenhum deles é consumível. Por isso, para dar um direcionamento claro e facilitar a vida de alunos e professores, vamos focar no nosso material dentro do currículo paulista, que são esses livros aqui — afirmou na ocasião.

Feder é investigado pela Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo por suposto conflito de interesse. Entre 2003 e 2018, ele foi CEO da Multilaser, empresa que vende itens de tecnologia para a área de educação. Ele deixou o posto quando assumiu a Secretaria estadual de Educação do Paraná, mas segue sócio de uma offshore dona de 28,16% das ações da empresa.

— Fui presidente da Multilaser até 2018, quando saí para assumir primeiro a secretaria do Paraná, onde fiquei por quatro anos, e não compramos um alfinete da empresa na minha gestão. E também aqui na minha gestão em São Paulo, é o meu compromisso, e meu compromisso com o governo, de não comprar um alfinete, nada, via licitação, nada, da Multilaser enquanto eu for secretário — afirmou.

App no celular de professores

Recentemente, em um novo capítulo da crise, professores e alunos da rede estadual de ensino tiveram um aplicativo da Secretaria de Educação instalado em seus celulares particulares sem que tivessem dado autorização para isso. Segundo informações do jornal "Estado de S.Paulo", o aplicativo Minha Escola SP foi instalado indevidamente no celular de quem já havia logado no sistema.

Não se sabe quantos aparelhos foram atingidos, mas a dimensão da rede é ampla: o estado de São Paulo tem mais de 3,5 milhões de alunos e cerca de 210 mil professores. A Secretaria de Educação afirmou que o programa foi instalado por erro, durante um teste da área técnica.


Fonte: O GLOBO