Plano Diretor de 2014 previu que imóveis ociosos poderiam ter IPTU aumentado por cinco anos e depois seriam desapropriados, mas isso nunca foi colocado em prática

O Plano Diretor aprovado em 2014 prevê que os proprietários de imóveis ociosos na cidade de São Paulo devem ser notificados pela prefeitura para dar um uso ao local e, caso não o façam, poderão ter o IPTU aumentado progressivamente por cinco anos e, caso os imóveis continuem ociosos, poderão ser desapropriados pela Prefeitura. 

Atualmente, a cidade tem 188 imóveis que poderiam ser desapropriados, mas o município nunca fez isso porque não há um decreto, que deveria ser editado pela prefeitura, regulamentando como se daria o processo de desapropriação.

Com isso, a cidade mantém prédios vazios enquanto poderia destiná-los para servir de moradia às pessoas que vivem nas ruas ou em condições precárias. A maior cidade do país tem um déficit de 369 mil moradias e viu o número de pessoas em situação de rua disparar nos últimos anos.

A Constituição brasileira prevê que toda propriedade precisa atender a uma função social. Para cumprir essa determinação, o Plano Diretor paulistano instituiu o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (PEUC), que fixa mecanismos para que o poder público notifique os imóveis ociosos e obrigue os proprietários a utilizá-los, seja para moradia, seja para atividades comerciais.

De acordo com dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), desde 2014, 1.852 imóveis foram notificados por descumprirem a função social da propriedade e, desse total, 253 proprietários deram uso ao seu imóvel, um total de 13%. A maioria deles fica na região central, com 174 imóveis passando a ser utilizados, inclusive, para moradia popular.

A política não tem como foco notificar domicílios vazios, como um apartamento, por exemplo, mas prédios inteiros ou cuja maior parte esteja sem uso. Um exemplo é um prédio que fica no número 1064 da Avenida Ipiranga, que tem mais de 50 apartamentos vazios, todos passíveis de desapropriação desde 2021, quando chegaram a quinta alíquota do IPTU progressivo. Na Avenida São João, 1151, também há um exemplo de imóvel nesta situação.

São considerados ociosos os imóveis não utilizados ou subutilizados por mais de um ano consecutivo ou não edificados — um exemplo de locais não edificados são os estacionamentos rotativos que funcionam apenas em um terreno térreo, sem nenhum prédio em cima. Quando os proprietários são notificados, têm um ano para apresentar ao poder público um projeto de utilização ou construção.

Caso isso seja descumprido, a prefeitura pode começar a aumentar o IPTU progressivamente, até chegar a alíquota de 15% do valor do imóvel — a alíquota básica é calculada sobre 1% do valor venal. Depois de cinco anos desse aumento, a prefeitura pode desapropriar os imóveis. Mas passados nove anos da lei, faltou vontade política para colocar a política em prática.

Questões jurídicas

Uma troca de e-mails a que o GLOBO teve acesso mostram que desde setembro de 2021 técnicos da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) alertam sobre a necessidade de editar um decreto que permita efetivar a desapropriação desses imóveis ociosos, o que só depende de um decreto. Mas a Procuradoria Geral do Município alertou para um impedimento legal-jurídico para colocar a medida em prática.

O Plano Diretor prevê que decorrido o prazo de cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que os proprietários dos imóveis tenham cumprido a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o imóvel, “a prefeitura poderá proceder à desapropriação desses imóveis com pagamento em títulos da dívida pública”, previsão que também está no Estatuto das Cidades, uma lei federal de 2001.

Ocorre que uma lei federal posterior impede que municípios e estados emitam títulos da dívida pública. A Procuradoria-Geral do Município alertou para essa impossibilidade e destacou que caberia ao Senado autorizar essa emissão, mas não houve avanço nessa tratativa. 

No próprio Plano Diretor está fixado que os títulos da dívida pública terão prévia aprovação do Senado Federal, mas a prefeitura nunca chegou ao estágio de pedir isso. A PGM destacou que como o município quitou a dívida que tinha com a União por conta do acordo envolvendo o Campo de Marte, seria possível a emissão de títulos da dívida pública, mas afirmou que a palavra final caberia ao Senado.

Mas há outras possibilidades para desapropriar os imóveis que descumpriram consecutivamente a função social da propriedade que nunca foram colocadas em prática. Uma delas é quando o valor da dívida do IPTU supera o valor do imóvel, em que a prefeitura poderia pegar o bem como pagamento da dívida. 

Neste caso, não haveria necessidade da prefeitura pagar nada ao proprietário. Há ainda uma terceira possibilidade, da realização de consórcios imobiliários para aproveitar os imóveis com a finalidade de produzir habitação de interesse social, mas também não foi posto em prática. Outro mecanismo, que também nunca foi usado, seria a arrecadação de imóveis abandonados por mais de três anos, em que o proprietário não tem mais a intenção de conservar.

A revisão do Plano Diretor sancionada no sábado (8) pelo prefeito Ricardo Nunes mantém o instrumento de Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, mas adiciona um novo mecanismo de desapropriação, desta vez por hasta pública. Na prática, a nova lei autoriza que a prefeitura faça um leilão desses imóveis. O valor arrecadado com o leilão servirá para pagar o proprietário, descontada a dívida do IPTU.

Ocorre que, deste modo, o imóvel vai parar na mão de quem o comprar no leilão, e não da prefeitura. Mas se o prédio ocioso que for leiloado estiver em uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), como é a maior parte do Centro de São Paulo, por exemplo, ele necessariamente precisará oferecer percentuais mínimos de habitação de interesse social. Por outro lado, a nova lei livrou de cumprir a função social da propriedade os locais sede de representação diplomática, sede de partidos políticos e templos de todo culto.

Entraves

A arquiteta e urbanista Ana Gabriela Akaishi, autora da tese de mestrado sobre os entraves dos imóveis ociosos no Centro de São Paulo, explica que a notificação dos imóveis ociosos por si só não garante que o local vai se tornar habitação de interesse social, pois a ideia é apenas obrigar que ele tenha algum uso e não fique abandonado.

— Mas quando um imóvel está dentro de uma ZEIS, ele obrigatoriamente tem que seguir o uso e ocupação dessa zona que é a produção de habitação social, então existe uma grande potencialidade deste instrumento nessas áreas — aponta.

Sua pesquisa revelou que os donos dos imóveis ociosos no Centro de São Paulo são variados, como pessoas físicas, bancos, administradores imobiliários, além de igrejas e instituições beneficentes. Alguns proprietários possuem apenas um prédio, outros são donos de diversos empreendimentos. Por isso, Akaishi diz que não é possível afirmar que seja pura especulação imobiliária.

— A maior parte dos imóveis não está na mão do capital imobiliário nem financeiro. São administradoras de imóveis, empresas, famílias e não necessariamente incorporadoras ou construtoras imobiliárias. Muitas igrejas têm imóveis que são doados por herança de algumas pessoas que não têm herdeiros, por exemplo. 

E há muitos imóveis comerciais. Antigamente, o Centro abrigava várias sedes de empresas e bancos. E no momento em que essas empresas vão para outros lugares, prédios inteiros ficam vazios. E a maior parte desses prédios é de um único proprietário, então se o proprietário vai alugar ou vender, tem que ser o prédio inteiro, o que traz uma complexidade na locação corporativa — explica a pesquisadora.

Alex Sartori, mestre em planejamento territorial e urbano pela USP, afirma que passados nove anos da instauração do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, é possível afirmar que ele só funcionou parcialmente.

— O fato da regulamentação não existir é sinal de alguma coisa mais profunda. Imóveis foram notificados, o IPTU aumentou, mas nunca chegamos nas vias de fato de cumprir o que está na lei. A regulamentação não acontece justamente para que este processo não possa chegar ao final e a gente percebe que o Estado mais protege a propriedade privada do que a questiona, mesmo quando ela deveria cumprir uma função social — opina.

Em nota, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento afirmou que a aplicação do PEUC “não é a única iniciativa para estimular a ocupação de imóveis subutilizados na cidade” e destacou que, em 2022, a Prefeitura aprovou um programa especial de retrofit, o Requalifica Centro, “com incentivos fiscais e urbanísticos para atrair investidores na recuperação de prédios antigos e promover sua transformação em edifícios habitacionais”. Ao todo, já são quatro edifícios aprovados com obras iniciadas e outros 16 com projetos de retrofit em análise.


Fonte: O GLOBO