Conheça as descobertas da pesquisa de um grupo de antropólogas que analisou a relação entre setores público e privado na área de segurança no estado

Gerente de segurança de um condomínio de luxo com quase 1.500 casas no interior de São Paulo, Júlio (nome fictício) criou o que ele chama de “sala sensível”. No local, um banco de inteligência é abastecido com dados confidenciais de moradores, prestadores de serviços e vigilantes, todos obtidos de forma sigilosa por policiais militares à paisana que integram a sua equipe. 

Ele admite que não pode, assim como seus funcionários, investigar a vida pessoal de ninguém. “Mas a polícia pode”, afirma ele. Ao contrário dos seguranças, que sabiam estar sendo monitorados, os moradores não tinham ideia de que eles próprios poderiam ter a vida vasculhada e suas fichas criminais entregues nas mãos dos agentes de inteligência.

Essa é uma das histórias reveladas em uma pesquisa de um grupo de antropólogas que estudou por oito anos a relação entre setores público e privado na área de segurança em São Paulo. O material mostra que, apesar de proibida pela lei, a presença de policiais no domínio particular está disseminada: eles vão de donos de empresas de vigilância a guardas na base dessa hierarquia informal.

O trabalho, liderado pela antropóloga Susana Durão, da Unicamp, aponta que a segurança no estado vive hoje uma situação de “ambiguidade sistêmica”, com conflitos de interesse. O mais notório é a coleta secreta de dados privados, compartilhados com policiais.

— Nossa intenção não era denunciar, mas entender este fenômeno da segurança privada associada à segurança pública, desconhecido por dentro. Encontramos essa mistura ampla de possibilidades de transações econômicas que transcendem largamente os quadros legais, e com repercussões na vida dos cidadãos — afirma Susana.

Às pesquisadoras, Júlio contou que os registros das atividades na portaria e as imagens das câmeras de segurança eram rastreados por sua equipe, que usava o banco de dados da polícia e outras “redes de conhecimento” para identificar pessoas com antecedentes criminais. As informações eram usadas em casos de roubo, agressão e sequestro. 

“A maioria dos incidentes é perpetrada por alguém com acesso ao interior do condomínio e não por suspeitos de fora”, justificou Júlio em relação à prática. “Como é um condomínio de alto padrão, alguns moradores são criminosos de colarinho branco, estelionatários e sonegadores de impostos, muitos investigados pela Polícia Federal”, acrescentou ele, conhecido entre secretários de governo e vereadores, conexões que lhe dão acesso a uma lista de mão de obra de policiais militares.

— Esse tipo de serviço é mais frequente em condomínios horizontais de alto padrão, de grandes mansões, onde se espera que haja traficantes e pessoas com negócios ilícitos. Os policiais (os de dentro do serviço e os de fora) trocam informações, e a gente não sabe quem se aproveita de quem — diz Susana.

Ao mergulhar em dezenas de casos, as antropólogas expuseram uma ampla zona cinzenta de ilegalidades. O estudo saiu em junho na revista especializada “Policing and Society” com o título “In the shadows of protection: Brazilian police in private security” (“Nas sombras da proteção: a polícia brasileira na segurança privada”). O artigo tem como coautoras as antropólogas Erika Larkins, da Universidade Estadual de San Diego (EUA), e de Paola Argentin, também da Unicamp.

Sem controle

Seguindo a tendência mundial, o Brasil tem mais vigilantes trabalhando na segurança privada do que policiais. No primeiro trimestre de 2022, segundo o último Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha 1.096.398 vigilantes, diante de 772.2022 agentes de segurança. 

Mais da metade da força de trabalho da segurança privada no Brasil atua à margem da regulação e do controle, a cargo da Polícia Federal, de acordo com o levantamento. Estima-se que, neste mesmo período, aproximadamente 55% dos profissionais da segurança privada, cerca de 600 mil pessoas, estavam fora dos parâmetros legais estabelecidos pela lei federal 7.102, de 1983, que estabelece normas para o setor.

— Sob a narrativa de que os salários são ruins, os policiais estão na gestão das empresas de segurança, à paisana no shopping ou na inteligência de um condomínio. Na prática, as seguranças pública e privada estão fundidas, e sem que a gente consiga distinguir quem é quem. É tão comum que às vezes nem se questiona — destaca Susana.

As pesquisadoras afirmam no estudo que “a polícia desempenha um papel fundamental na indústria de segurança privada do Brasil, mesmo sendo impedida por lei de participar do negócio” e que “o mercado de segurança privada reforça os ganhos materiais e simbólicos dos oficiais”.

Alguns dos policiais de média hierarquia entrevistados pelas pesquisadoras reconheceram ser donos de empresas de segurança, sem especificar se usam laranjas ou se possuem negócios totalmente informais. As antropólogas não quantificaram os casos no estudo, mas afirmam que integrantes mais bem relacionados da polícia preferem atuar como “consultores”. Esse tipo de atividade deixa menos rastro e é mais propensa a resultar em vazamento de inteligência policial.

Civis com piores postos

Aos policiais de menor escalão restam postos de bico como “motinhas” (rondas de motocicleta) e em guaritas. Os melhores bicos são reservados a quem pertence à corporação, com os profissionais civis ocupando postos de remuneração menor e às vezes tendo até de “alugar” uma vaga de vigia de um PM.

Nesse amplo mercado, policiais que fazem bico dividem espaço com seguranças contratados por empresas legais que passam por cursos de formação e exames de aptidão. 

Ivan Hermano Filho, vice-presidente da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist), afirma que a limitação da PF na fiscalização dos serviços clandestinos e a falta de leis que punem policiais irregulares criminalizam quem age de acordo com a legislação. 

Ele defende a aprovação do Estatuto da Segurança Privada, há anos no Senado, que cria sanções administrativas e penais para policiais que atuam no segmento:

— A lei, entre outras coisas, impediria a formação de novas milícias, que nas grandes metrópoles nasceram justamente pela impossibilidade de o Estado atuar com força contra os policiais que trabalhavam com “segurança privada” em comunidades— diz ele.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que qualquer denúncia de trabalho de integrantes das forças de segurança fora das instituições policiais, mesmo que nos horários de folga, “são rigorosamente investigadas pelas respectivas corregedorias”. O órgão disse ainda que “o reconhecimento e valorização das carreiras policiais são compromissos da atual gestão”.

A Polícia Federal informou que não admite a prática de “bico” e que, em caso de descumprimento da regra, “o servidor está sujeito a procedimentos investigativos que podem culminar na exclusão dos quadros da corporação”. A PF não respondeu as críticas sobre a fiscalização do segmento.


Fonte: O GLOBO