Novo corregedor a assumir em novembro defende ‘intervenção mínima’ e ‘autocontenção’ da Justiça Eleitoral – e vai herdar processos que investigam o ex-ocupante do Planalto

O julgamento da primeira das 16 ações que investigam a fracassada campanha de Jair Bolsonaro à reeleição resultou não apenas na inelegibilidade do ex-presidente, mas deu pistas do que esperar sobre o destino dos outros processos que miram o ex-ocupante do Palácio do Planalto.

Isso porque, a partir de novembro, o ministro Raul Araújo assume o posto de corregedor-geral da Justiça Eleitoral e, por tabela, herdará a relatoria de todas as Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) que investigam a fracassada campanha de Bolsonaro à reeleição.

Em seu voto de 49 páginas pela absolvição de Jair Bolsonaro das acusações de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, Raul Araújo deixou claro sua visão de mundo sobre o papel da Justiça Eleitoral – e como será sua linha de atuação na análise de eventuais ilícitos cometidos pelo candidato derrotado do PL.

No caso de Bolsonaro, conforme informou a coluna, Raul Araújo recuou da própria posição tomada em fevereiro passado e rejeitou a inclusão da minuta golpista encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres ao julgar o mérito da ação movida pelo PDT no caso da reunião de Bolsonaro com embaixadores no Palácio da Alvorada, marcada por ataques infundados ao sistema eleitoral.

E não só: Raul Araújo limitou sua análise no caso à reunião propriamente dita de Bolsonaro com os embaixadores, desconsiderando as informações e os documentos reunidos ao longo da investigação após o compartilhamento de provas com o Supremo Tribunal Federal (STF), determinada pelo relator do caso e atual corregedor, o ministro Benedito Gonçalves.

Enquanto Gonçalves considerou a reunião dentro de um contexto mais amplo – dos sucessivos ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas e à democracia –, Araújo encarou o evento como um ato isolado, esvaziando em sua análise o conjunto de elementos contidos no processo, que trazia a minuta e outros 661 documentos.

Não à toa, Benedito condenou Bolsonaro, enquanto Araújo o absolveu.

Na prática, fontes que acompanham de perto as investigações que tramitam no TSE avaliam que essas posturas diametralmente opostas do atual corregedor (Benedito) e do futuro (Araújo) no caso da reunião dos embaixadores apontam que o sucessor deve adotar uma postura bem menos pró-ativa na instrução das ações que ainda aguardam julgamento.

Ou seja: diferentemente de Benedito Gonçalves, Raul Araújo não deve imprimir um ritmo célere às investigações, nem ser um grande entusiasta da coleta de novas provas, nem do compartilhamento de informações com o STF, por exemplo.

No seu voto pela absolvição de Bolsonaro, Araújo deu o seguinte recado:

“Compreendo não ser possível, na presente AIJE, valer-se – para o fim de se aferir a configuração da gravidade do ato abusivo – de elementos fático-probatórios cujo referencial temporal seja posterior à data do pleito, razão pela qual não serão apreciados temas como a minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida na residência do sr. Anderson Torres e os fatos relacionados à alegada não aceitação dos resultados eleitorais”, afirmou o ministro, acolhendo a tese defendida pelo ex-presidente da República.

Foi uma posição radicalmente diferente à de Benedito Gonçalves, que defendeu que as consequências do discurso beligerante e antidemocrático de Bolsonaro deveriam, sim, ser levadas em consideração:

“Não é possível fechar os olhos para os efeitos de discursos antidemocráticos. Já assinalamos que fatos inverídicos justificam direitos de respostas, nas campanhas eleitorais. Da mesma maneira, a divulgação de notícias falsas é capaz de vulnerar bens políticos e eleitorais.”

Como futuro relator das ações que investigam Bolsonaro e seu companheiro de chapa, o general Walter Braga Netto, caberá a Araújo dar o ritmo do processo, autorizar depoimentos, determinar a produção de provas, avaliar eventuais quebra de sigilo e pedidos de compartilhamento de informações com investigações já em andamento em outros tribunais, como o Supremo.

Lá, tramitam inquéritos que atormentam o clã Bolsonaro, como o das fake news, o dos atos golpistas de 8 de janeiro e o das milícias digitais, todos sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que também preside o TSE.

As ações que aguardam julgamento no TSE abordam uma série de pontos incômodos para o entorno bolsonarista, como o uso político da Polícia Rodoviária Federal para tumultuar o processo eleitoral no segundo turno; a existência de um ecossistema bolsonarista de desinformação nas redes sociais; o uso político do 7 de Setembro como evento de campanha de Bolsonaro.

Ao absolver Bolsonaro, o futuro corregedor defendeu oito vezes a “intervenção mínima” da Justiça Eleitoral e, em outro ponto, frisou que se impõe aos magistrados “o exercício da salutar autocontenção, “mensurando com prudência a necessidade de intervenção do Poder Judiciário Eleitoral no processo eleitoral”.

A “intervenção mínima” e a “autocontenção” de Araújo, no entanto, se dissiparam quando ele mesmo proibiu, com uma canetada, a manifestação política de artistas durante o festival Lollapalooza em março do ano passado, atendendo a um pedido do PL.

Duramente criticado pelos próprios colegas, o ministro acabou reconsiderando a própria decisão e arquivou o caso, sob a alegação de ter sido induzido ao erro pela legenda de Bolsonaro.

“Quando o ministro Raul estava responsável pelas ações de propaganda, adotava um perfil mais restritivo, vide o caso Lolapallooza, mas agora, em questões de efeito sancionatório mais profundo, deverá adotar uma postura menos intervencionista”, compara a advogada Laila Viana de Azevedo Melo, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

Ainda restam 15 ações contra Bolsonaro – movidas pelo PDT, PT e pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que disputou a Presidência da República pelo União Brasil, amargando um quinto lugar, com 0,51% dos votos.

Conforme informou O GLOBO, apesar da troca na Corregedoria, ministros da Corte avaliam que o cenário seguirá desfavorável ao ex-presidente de uma forma geral.

Isso porque, mesmo com a saída de Benedito Gonçalves, permanecerão atuando no TSE outros quatro ministros que deram votos pela condenação de Bolsonaro: Cármen Lúcia, Floriano Azevedo, André Ramos Tavares e o presidente da Corte, Alexandre de Moraes, que só vai sair do tribunal em junho de 2024.

Mesmo assim, entre os adversários de Bolsonaro, o temor é o de que a “autocontenção” e a “intervenção mínima” de Raul Araújo à frente da Corregedoria a partir de novembro deste ano acabem se revelando “inércia”.


Fonte: O GLOBO