A península taiwanesa enfrenta a escalada de tensão entre as maiores economias mundiais, amplificada pelas consequências geopolíticas da Guerra na Ucrânia.

As mais velhas catadoras de mariscos do arquipélago de Kinmen conhecem bem o passado do lugar. Elas lembram de quando eram crianças e se escondiam das bombas lançadas, da outra margem do estreito de Taiwan, pelo Exército de Libertação Popular (comunista) de Mao Tsé-Tung. São memórias “muito claras”, dizem. Uma das senhoras deixa transparecer o medo que sente de ver tudo voltar, com um ataque chinês ao território taiwanês, embora não aposte nisso.

— Mas o que podemos fazer? Se acontecer, aconteceu — diz outra pescadora.

As águas do Estreito de Taiwan transmitem paz, sem nenhum vestígio da disputa entre as duas maiores potências econômicas do planeta, Estados Unidos e China. Mas algo destoa na paisagem. É um cenário típico de regiões marcadas pela história. 

De repente, surge na costa uma linha de objetos pontudos e enferrujados que faziam parte das antigas barreiras de defesa contra a marinha comunista chinesa. Logo adiante, um velho tanque de guerra americano soterrado pela areia. Obsoleto e parcialmente enterrado —com uma parte que insiste em se manter visível — o artefato é uma metáfora de um conflito que se nega a desaparecer.

Foi nas praias de Kinmen — arquipélago de Taiwan localizado a poucos quilômetros da China continental — que os nacionalistas impediram o avanço comunista em 1949. Eles fugiam da derrota na Guerra Civil, mas conseguiram conter o avanço inimigo e se estabelecer em Taipé. 

Formaram uma espécie de governo no exílio, sob o comando do líder do Kuomintang, Chiang Kai-shek. A esse governo, deram o nome de República da China — dando origem a um dos maiores conflitos geopolíticos contemporâneos, resquício da Guerra Fria que se mantém explosivo e volátil, pela oposição de interesses entre Pequim e Washington.

Durante anos, Kinmen esteve ocupada por milhares de soldados e foi alvo de bombardeios, elevando a tensão entre as duas potências a uma escala nuclear. A ilha de Taiwan propriamente dita, onde vive a maior parte dos 23 milhões de habitantes do país, se encontra a dezenas de quilômetros ao leste. O grupo de pequenas ilhas próximas à China — a uma distância que se pode cruzar a nado — é o lugar ideal para começar a entender o contexto geopolítico.

Ali do outro lado

De um ponto tão próximo do continente, se vê com clareza a vida do outro lado, quase tão perto que se pode tocá-la. Com binóculos, lê-se os enormes caracteres escritos, de propósito, por Pequim, para convencer os taiwaneses de uma “solução”semelhante à de Hong Kong — “Um país, dois sistemas para unificar a China”. Taipé acredita que, na outra margem, há também mil mísseis apontados para a ilha.

Hoje, Kinmen perdeu o vigor militar e se transformou em centro turístico, onde os viajantes podem tirar fotos de frente para o litoral chinês. Lii Wen, de 33 anos, que acabou de tirar uma foto com a China ao fundo, é um político local de outro arquipélago, Matsu. Ele é filiado ao Partido Progressista Democrático (de orientação contrária à aproximação com Pequim), que hoje governa Taiwan. E defende a manutenção do status político da ilha e mais investimento em defesa:

—Temos que estar preparados para qualquer eventualidade — defende Wen.

Já para He Chihyi, de 80 anos, que também está passeando por Kinmen, o caminho é outro. O ex-mecânico da Força Aérea taiwanesa é defensor de “uma só China”:

— Os EUA nos manipularam. Devemos nos reunificar .

Antes da década de 1970, o governo de Taipé chegou a ser reconhecido por parte da comunidade internacional como o único governo chinês. Tudo mudou em 1971, quando Taipé perdeu a cadeira na ONU em favor da República Popular da China e começou a troca de vínculos diplomáticos, da maioria dos países, para Pequim, sob o princípio de “uma só China”.

Hoje, Taiwan só é reconhecida por 13 Estados, mas funciona como território independente de fato. Os EUA — que reconheceram a República Popular da China em 1979 — regem a política sobre Taiwan pelo princípio de “ambiguidade estratégica”, ao não definir claramente se responderiam a um ataque militar à ilha. 

Desse modo, enquanto Pequim defende que Taiwan é “parte inseparável” do território chinês e não renuncia ao “uso da força” para recuperar as terras taiwanesas, Washington envia armas à ilha, em um ciclo com potencial explosivo.

As tensões aumentaram, nos últimos anos, na medida em que cresceu a rivalidade entre EUA e China. Se a competição entre as duas potências seguir marcando o século XXI, Taiwan é o ponto no mapa onde os dois gigantes podem colidir.

A guerra na Ucrânia serve de alerta. Quando Moscou invadiu o vizinho, políticos e assessores da OTAN e da União Europeia diziam, nos bastidores, que a resposta devia ser firme para mandar uma mensagem à região da Ásia e do Pacífico — e em direção oposta às pretensões expansionistas de Pequim.

— Vejo Taiwan como uma fronteira avançada da sociedade democrática — diz Syaru Lin, que deixou o mercado financeiro para liderar o Centro de Resiliência e Inovação para a Ásia e o Pacífico, com sede em Taiwan e nos EUA.

Parceiros comerciais

Taiwan produz cerca de 60% dos semicondutores usados no planeta— e 90% dos mais avançados. A maior parte dessa produção vem de uma única companhia — TSMC — fundada nos anos 1980. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita do país passa de US$35 mil, mais que o Japão e mais que o dobro do chinês. 

Lin conta que o quadro nem sempre foi esse. Taiwan já foi um lugar pobre, de agricultores, marcado pelas potências coloniais europeias, pelo império chinês e pela breve ocupação japonesa. Para ela, é preciso mudar o foco do discurso sobre Taiwan, da segurança para a “identidade democrática”.

— Os ucranianos diriam o mesmo. Nós sempre estivemos no centro dessa crise— pontua Lin, pontuando que o desenvolvimento tecnológico da ilha, crê, vem justamente dessa busca por identidade. O processo democrático na ilha foi longo e tortuoso.

Após a morte de Chiang Kai-shek, em 1975, Taiwan caminhou para a abertura política e aproximação com a China. As primeiras eleições foram em 1996. Houve a retomada das viagens de um lado para o outro e de laços comerciais. Hoje, paradoxalmente, os chineses são os principais parceiros comerciais de Taiwan.

A democratização da ilha e o seu desenvolvimento econômico caminharam junto ao surgimento de um “sentimento de pertencimento”. Em 1992, apenas 17,6% da população de Taiwan o relacionava a uma identidade comum. Hoje, já são 60,8%, de acordo com as pesquisas mais recentes. Por outro lado, o percentual dos que se consideram “chineses e taiwaneses” caiu de 46,4% para 32,9%. E o percentual dos que se sentem apenas “chineses” despencou de 25% para 2,7%.

Abraçar essa identidade é, para a especialista Syaru Lin, líder do Centro de Resiliência e Inovação para a Ásia e o Pacífico, acordar da letargia dos últimos anos, quando muitos achavam que “negociar com o inimigo reduziria a possibilidade de tensão”


Fonte: O GLOBO