Em discurso nesta terça, presidente disse que soldados não precisaram ser deslocados da linha de frente; Justiça russa desiste oficialmente de acusações contra Wagner

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou nesta terça-feira que as Forças Armadas e a polícia de seu país "essencialmente pararam uma guerra civil" no fim de semana, durante a crise imposta pelo breve motim do grupo paramilitar Wagner. 

O Kremlin também anunciou o abandono do caso criminal contra o chefe dos mercenários, Yevgeny Prigojin, e outros arquitetos do levante, cumprindo os termos do acordo firmado para que o grupo cessasse sua marcha em direção a Moscou.

Aparentemente respondendo a relatos de que os mercenários encontraram pouca resistência e chegaram a 200 km da capital, Putin discursou para cerca de 2,5 mil soldados, policiais e outros agentes de segurança na Praça da Catedral, no Kremlin. 

É raro que o presidente faça declarações públicas para militares de dentro da sede do governo — sinal de que deseja demonstrar que ainda tem o apoio militar, agradecendo suas tropas por "ajudarem a manter a ordem".

— Vocês essencialmente pararam uma guerra civil, vocês agiram de forma adequada e coordenada — disse Putin, horas após um pronunciamento à nação na noite (tarde no Brasil) de segunda em que disse que os rebeldes teriam sido "destruídos" se entrassem em Moscou. 

— As pessoas que se viram arrastadas para esta rebelião viram que o Exército e o povo não estavam ao seu lado — completou ele, apesar de vídeos de cidadãos aplaudindo e interagindo com os combatentes.

O pronunciamento começou com um minuto de silêncio para os pilotos russos que morreram durante uma tentativa de fazer frente ao avanço do Wagner. Não se sabe ao certo o número de mortos, mas blogueiros militares influentes falam em até 13 vítimas.

— Alguns de nossos camaradas morreram em confronto com os rebeldes. Pilotos. Eles não hesitaram e, com honra, realizaram sua tarefa e seus deveres militares — disse o presidente, que não fez menção ao acordo firmado com Prigojin.

Putin afirmou também que não foi necessário deslocar nenhum soldado da linha de frente, dando a entender que sua invasão na Ucrânia não foi prejudicada. De acordo com números da ONU divulgados nesta terça, as forças russas prenderam arbitrariamente 864 civis ucranianos desde que a guerra começou em 24 de fevereiro do ano passado, executando 77 deles e torturando vários outros.

Mais tarde, Putin deve se reunir com integrantes do alto escalão militar e, depois, representantes da mídia estatal, em uma aparente tentativa de demonstrar normalidade e ação após a tensão de três dias atrás. 

Ele também conversou por telefone com o príncipe saudita Mohammed bin Salman — acusado de ordenar em 2018 o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi —, que "expressou seu apoio às medidas tomadas pela liderança russa".

Na segunda, o presidente russo já havia conversado com os líderes do Catar, dos Emirados Árabes Unidos e do Irã, sinal da importância que Moscou dá aos poucos aliados que restam frente ao isolamento do Ocidente desde que a guerra na Ucrânia começou.

Aceno a Shoigu

O discurso foi acompanhado pelo ministro da Defesa, Sergei Shoigu, o principal algoz de Prigojin, em um sinal de apoio presidencial ao integrante do Gabinete. O líder paramilitar disse na segunda que seu objetivo não era "derrubar" o governo, mas sim protestar contra o alto comando militar, que tentava pôr rédeas na atuação das forças paralelas e submetê-las ao Estado. A guerra na Ucrânia, afirmou ele, teria acabado "muito mais cedo" caso os militares russos tivessem a mesma eficácia do Wagner.

A última vez que Prigojin foi visto ao vivo foi no sábado, no banco de um carro preto após seus combatentes devolverem a cidade de Rostov-no-Don, ocupada no fim de semana. Um avião vinculado ao mercenário — ex-amigo de Putin, ele passou boa parte dos anos 2000 à frente de um serviço de buffet alimentar popular nos eventos do Kremlin — pousou nesta terça na Bielorrússia, mas Moscou disse não saber de sua localização neste momento e não está claro se o líder do Wagner estava a bordo. No sábado, Putin acusou-o de uma "punhalada pelas costas".

No acordo que acalmou as tensões no fim de semana, mediado pelo presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, Prigojin concordou em recuar e ir para o exílio na Bielorrússia, enquanto os russos afirmaram que não processariam nenhum dos participantes do levante. Nesta terça, o Serviço Federal de Segurança (FSB) confirmou que as acusações foram suspensas, após ser noticiado na véspera que os processos permaneciam abertos.

"Foi determinado que os participantes pararam suas ações que buscam diretamente realizar um crime em 24 de junho", disse em nota o FSB. "Levando em conta essas e outras circunstâncias relevantes, a agência investigativa resolveu em 27 de junho encerrar o caso criminal."

O Ministério da Defesa também disse que os combatentes do Wagner estão em vias de devolver suas armas pesadas, o que parece ter sido outra das condições do acordo. Pelos termos, todos os combatentes do Wagner que não participaram do levante assinariam contratos com as Forças Armadas oficiais, transformando-se em quadros oficiais. Quem não quiser fazê-lo, disse Putin na segunda, poderá ir para a Bielorrússia ou abandonar o combate armado.

A Guarda Nacional também anunciou que irá reforçar seus homens com mais tanques e armamentos segundo a agência de notícia estatal RIA.

Prigojin está há meses em pé de guerra com a alta cúpula militar, tensões que se acentuaram em meio ao protagonismo que o Wagner assumiu na disputa pelo controle da cidade de Bakhmut, no leste. Apesar de pouco estratégica, a região ganhou forte simbolismo por ser palco da batalha mais longa e sangrenta do conflito russo-ucraniano.

O triunfo russo em maio foi a maior vitória do país de Putin neste ano, vitória na qual o Wagner teve papel fundamental — superava os adversários numericamente com as ondas de recrutamento nos presídios russos, adotava táticas que ignoravam o alto custo humano e era abastecido por armas pelo Kremlin. Prigojin estima ter perdido 20 mil homens apenas ali.

O destaque, contudo, gerou tensões na Defesa, e críticas de que estava perdendo o monopólio da violência e enfraquecendo a autoridade estatal na nação é que dona do maior arsenal nuclear do mundo. Prigojin, por sua vez, demandava mais munições, homens e fazia críticas vorazes às ações de Shoigu e de seu órgão que buscassem pôr rédeas no Wagner, chegando a anunciar (e depois voltar atrás) que deixaria Bakhmut.

Kremlin contesta análises

A gota d'água, segundo informações da inteligência ocidental, foram as tentativas mais recentes do Ministério da Defesa para integrar os paramilitares às Forças Armadas regulares, reduzindo o poder de Prigojin.

Neste mês, a Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, aprovou uma lei destinada a devolver ao Estado o monopólio da violência: por ela, todos os combatentes, mobilizados, voluntários ou presidiários seriam obrigados a se submeter à hierarquia do Ministério da Defesa. A Duma também aprovou uma norma para contratar para lutar na linha de frente delinquentes que estejam cumprindo suas penas.

As duas medidas significam, na prática, que o Wagner não poderia mais formar um exército privado de mercenários e que subscrever aos termos do governo, disse Prigojin, teria interrompido as atividades do Wagner a partir de 1º de julho. 

Seus combatentes, acrescentou, tinham planejado entregar suas armas pesadas ao Exército russo, mas foram atacados na noite de sexta-feira na região onde se concentravam, em Rostov-no-Don, matando mais de duas dúzias de soldados de Wagner — uma alegação para a qual não há evidências independentes.

O Kremlin negou nesta quarta que a confusão dos últimos dias tenha debilitado Putin, afirmando por meio de seu porta-voz, Dmitry Peskov, que "não estamos de acordo" com tal análise. Ele caracterizou os pareceres como "discussões vazias" que "não têm nada a ver com a realidade":

— Esses acontecimentos demonstram até onde a sociedade se consolida ao redor do presidente — afirmou Putin.


Fonte: O GLOBO