Reunidos na Paulista, pais e filhos contam a luta para o reconhecimento dentro e fora da família
"Mamãe, posso morrer hoje para nascer menina amanhã?". Quando Thamirys Nunes ouviu o pedido do filho de 3 anos e 11 meses, percebeu o tamanho de seu desconforto no corpo de menino. Os meses seguintes seriam solitários. Sem referências LGBT no convívio da família e dos amigos, sentiu-se perdida e julgada.
— Cheguei a achar que nunca ia conseguir ser feliz. Mas, entre mim e minha filha, faria de tudo para ela pelo menos ser. Me fortaleci um ano depois e redescobri a maternidade — diz Thamirys, que participou da 27ª edição da Parada do Orgulho LGBT+.
Passou a pesquisar, entender o conflito da filha e formar uma rede de apoio. Publicou em 2020 o livro "Minha criança trans?" e largou a carreira de cerimonialista de casamentos para entregar a vida à causa trans. A Minha Criança Trans começou naquele mesmo ano e reuniu centenas de famílias que, também desamparadas, resolveram se unir para se ajudar e dar visibilidade à causa. Ganhou CNPJ há cinco meses, e nesta edição da Parada do Orgulho LGBT+ trouxe 120 famílias à Avenida Paulista, em São Paulo, com um grito de guerra: "Ser trans é um direito. Nossos filhos precisam de respeito".
Vestindo as cores rosa e azul da bandeira da causa trans, as famílias passaram a manhã se divertindo com brincadeiras e comida na dianteira do desfile, que iniciou seu trajeto até a Rua da Consolação no começo da tarde.
Hoje a filha Agatha tem 8 anos e a amizade de diversas outras crianças que compareceram ao evento com os responsáveis. A ONG criada pela mãe atende crianças e adolescentes trans em todo o país e tem 580 famílias associadas.
— A gente quer mostrar quão natural é nossa família. Nossos filhos merecem ser respeitados. Muitos nos julgam pais disfuncionais, mas nossas crianças são muito amadas — diz Thamirys.
O arquiteto e publicitário Álvaro Armbrust, de 59 anos, trouxe a filha Celeste, de 17 anos, para a parada. A adolescente se percebeu trans durante a pandemia, após anos de introspecção e solidão no quarto. Num desabafo de cinco minutos na mesa do almoço, virou a vida dos pais de cabeça para baixo. Para melhor.
— A primeira coisa que pensamos, e notamos que é algo comum com outros pais e mães, foi: "Será que não é moda?" — diz Armbrust, acrescentando que, após a fase de negação, veio uma aceitação rápida e de acolhimento.
A luta de Thamirys e Armbrust é comum a de outras famílias com crianças trans. O país carece de políticas públicas inclusivas, preparo dos profissionais de saúde e assistência social e do Poder Judiciário.
— A gente aprendeu que trans não é como gays e lésbicas. É uma letra bem mais para o fim da sigla. Sofre preconceito até mesmo dentro da comunidade, como se fosse uma casta — diz o pai.
Após consultas com muitos profissionais que julgaram discriminatórios e desatualizados, descobriram apoio no Hospital das Clínicas da USP. Hoje sua esposa, Cláudia Armbrust, é diretora da ONG de Thamirys, e juntos tentam acolher outros responsáveis envolvidos na causa.
Apesar do conflito dos filhos e uma montanha de obstáculos para fazê-los ter os mesmos direitos e oportunidades de crianças cisgênero, dizem ter se tornado pessoas melhores, mais sinceras e sensíveis nas relações. A nenhuma diferença para as "famílias tradicionais".
— Sou um pai como qualquer outro. A Fernanda (filha mais velha) ia ser médica e o Pedro ia ser engenheiro. A diferença é que não é mais Pedro, é Celeste — diz ele.
Fonte: O GLOBO
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