Especialista alerta para riscos com decisão da Corte e explica que ações afirmativas nos EUA não são o equivalente da política de cotas no Brasil

Para Ana Lúcia Araújo, especialista na história transnacional da escravidão da Universidade Howard, nos EUA, a decisão da Suprema Corte americana de declarar inconstitucionais os programas de admissão em universidades com base na cor da pele ou na origem étnica, abre uma caixa de pandora que pode enfraquecer a promoção da diversidade também no mundo do trabalho.

Ela explica que a grande maioria dos alunos que pertencem a minorias raciais tem acesso às universidades por mérito próprio e não por causa das ações afirmativas, “como querem fazer crer aqueles que se opõem ao critério racial nas decisões sobre admissões”. E faz um alerta: “A principal preocupação agora são os direitos civis. Entre outras, a dificuldade crescente das minorias em ter acesso ao direito de votar.”

Quando e em que contexto foram criadas as ações afirmativas? Qual a sua importância para o país na reversão dos efeitos nocivos da segregação racial?

As ações afirmativas foram criadas no contexto do movimento dos direitos civis na década de 1960. Apesar do foco no componente racial, as ações afirmativas têm como objetivo remediar várias disparidades, inclusive entre homens e mulheres e entre pessoas brancas e de outros grupos raciais, principalmente os africanos-americanos, que continuaram sem acesso aos direitos civis até a década de 1960. 

No caso da educação, as ações afirmativas tinham como objetivo garantir o acesso das minorias (inclusive os negros) às instituições de ensino historicamente brancas.

Os setores de admissões das universidades terão de se adaptar à decisão. Quais serão os efeitos imediatos no próximo ano letivo?

É cedo ainda para dizer, já que o processo de admissões já vai começar e as universidades têm uma grande latitude para escolherem um corpo estudantil diverso com base em uma variedade de fatores.

Também é importante ter em mente que, em 2023, a grande maioria dos alunos que pertencem a minorias raciais tem acesso às universidades por mérito próprio e não por causa das ações afirmativas como querem fazer crer aqueles que se opõem ao critério racial nas decisões sobre admissões.

Edward Blum, fundador e presidente da Students for Fair Admissions (Estudantes pelas admissões justas, em tradução livre do inglês), disse que o grupo estaria “vigilante” para garantir que as universidades aderissem à decisão, alertando os líderes para não tentarem criar soluções alternativas para considerar a raça como critério de acesso. A decisão impediria totalmente as universidades de perseguir metas de diversidade semelhantes às ações afirmativas?

A decisão não previne a promoção da diversidade, mas cria vários obstáculos em um contexto em que em vários estados, como a Flórida, já existe um ataque direto aos escritórios das universidades que tem como objetivo promover e educar seu corpo professoral, discente e funcionários na promoção da diversidade. 

A declaração de Blum também mascara o fato de que as ações afirmativas nos Estados Unidos não são o equivalente da política de cotas no Brasil e que a maioria [de integrantes] das minorias que entram hoje em universidades predominantemente brancas nos Estados Unidos não o fizeram por conta das ações afirmativas.

Como as universidades manterão outras preferências não acadêmicas, como dar vantagem aos filhos de doadores e ex-alunos e a determinados tipos de atletas?

É uma excelente pergunta. As universidades predominantemente brancas de elite como Harvard, Columbia, Stanford, Princeton e dezenas de outras não parecem ter nenhum plano claro para eliminar as admissões que consideram os vínculos familiares, ou seja, alunos cujos familiares estudaram na universidade. 

Em alguns casos, essas admissões chegam a quase 50% dos novos alunos. Também não há planos claros para eliminar as vantagens para a admissão de atletas.

Biden disse que as universidades americanas “são mais fortes quando há diversidade racial”, e vários estudos comprovam que a diversidade racial é positiva, inclusive, no desempenho dos alunos. Como essa medida pode afetar a comunidade acadêmica como um todo?

Vai afetar de várias formas, inclusive com situações em que potenciais candidatos pertencendo a grupos minoritários vão se sentir intimidados, desencorajados, para se candidatar a certas universidades.

A decisão poderia se expandir além das faculdades e universidades em todo o país, por exemplo, levando os empregadores a repensar como consideram a questão na contratação?

Possivelmente. A decisão abre uma caixa de pandora que pode enfraquecer a promoção da diversidade também no mundo do trabalho nos lugares onde ela existe.

A decisão é mais uma medida recente da Suprema Corte dos EUA que reverte políticas progressistas históricas no país. Como essa nova formação da Corte afeta essas políticas a longo prazo?

O fim das ações afirmativas já vem ocorrendo na linha de outras derrotas como a questão dos direitos reprodutivos. A principal preocupação agora são os direitos civis. Entre outras, a dificuldade crescente das minorias em ter acesso ao direito de votar.


Fonte: O GLOBO