Ex-técnico da seleção chinesa é preso em meio à investigação considerada "sem precedentes"

Ainda pode levar meses, ou anos, até que se saiba o que está por trás do mais recente escândalo de corrupção no futebol chinês. A julgar pela rigidez com que a informação é controlada no país, talvez nunca se saiba exatamente o que moveu a engrenagem. 

Mas deve ser coisa grande, muito maior do que o caso de manipulação de resultados que tem sacudido o futebol brasileiro. A escala da investigação “é sem precedentes”, disse à coluna o escritor William Bi, consultor de esportes baseado em Pequim.

O primeiro a cair foi o ex-jogador e ex-técnico da seleção chinesa, Li Tie. Em novembro ele sumiu do mapa, o que gerou rumores nas redes sociais do país de que estava em maus lençóis. 

Pouco depois a suspeita se confirmou, com o anúncio de que Li estava sob investigação das “autoridades de disciplina” por “graves violações da lei”. Mais não foi dito, mas a combinação de palavras foi suficiente para indicar que é coisa grande ligada à corrupção.

Segundo fontes que acompanham o assunto, Li é acusado de envolvimento em manipulação de resultados na época em que treinou dois times da divisão principal do futebol chinês até 2019, ano em que foi nomeado técnico da seleção. Antes da carreira de técnico, Li passou um tempo treinando no Brasil na década de 1990, se destacou como uma das grandes estrelas do futebol chinês e depois fez carreira no futebol europeu, com passagens pelo Everton e pelo Sheffield United, da Inglaterra.

A prisão de Li chocou a opinião pública, mas não dá para dizer que pegou de surpresa os torcedores chineses, amargurados há tempos por decepções. Há dez anos uma investigação revelou um amplo esquema de manipulação de resultados, com a participação de alguns dos principais cartolas do país.

Doze clubes foram multados, dezenas de dirigentes, juízes e jogadores receberam punições. Alguns acabaram na cadeia, outros foram banidos para sempre do esporte. Mas, como mostra o escândalo atual, o problema persistiu.

Depois de Li, a atual investigação chegou ao topo da cadeia com a detenção de Chen Xuyun, presidente da Associação de Futebol da China (AFC). Aliviados com o fim das paralisações causadas pela política de Covid zero desde 2020, os torcedores finalmente voltaram aos estádios este ano, mas foi um retorno desconfiado, sob a sombra do escândalo. 

A credibilidade do futebol na China está no fundo do poço, me disse Chai, jovem torcedor do Beijing Guoan, na estreia do time na temporada, há um mês. Ele até pensou em boicote, mas a saudade da arquibancada falou mais alto, e, “afinal de contas, quem é torcedor de verdade não abandona seu time”. Orgulhoso, mostrou a foto do único brasileiro no elenco, o volante Josef de Souza, ex-São Paulo.

Era a inauguração do novo Estádio dos Trabalhadores, um marco da capital chinesa que foi demolido e reconstruído do zero para sediar a final da Copa da Ásia, em junho. Mas no ano passado a China desistiu de organizar o evento por causa da pandemia. 

Foi mais um duro golpe para os torcedores chineses, que viam no torneio um ensaio para, quem sabe, um dia ter uma Copa do Mundo no país. Com tudo tinindo após sediar o Mundial de 2022, o Qatar se ofereceu para receber a Copa Asiática, remarcada para janeiro do ano que vem.

A investigação que envolve o futebol chinês junta dois temas diretamente associados ao presidente do país, Xi Jinping. Sua gestão é marcada por uma intensa campanha contra a corrupção, que já destituiu e botou atrás das grades milhares de funcionários públicos. 

Apaixonado por futebol, Xi assumiu o poder em 2012 com o sonho de tornar a China uma potência também no futebol até 2050. Entre outras coisas, o projeto previa aulas de futebol nas escolas públicas e a construção de milhares de campos pelo país. Aproveitando o empurrão do líder chinês mais poderoso desde Mao Tsé-tung, os principais times foram na onda, investindo somas astronômicas para criar uma liga competitiva.

Segundo números da Fifa, entre 2011 e 2020 chegou a US$ 1,7 bilhão o total investido por clubes chineses em contratações, incluindo em astros do futebol brasileiro como Conca e Hulk, atraídos por salários mais altos que nos maiores times da Europa. 

Conca chegou a ganhar US$ 1 milhão por mês, entrando no top 3 dos jogadores mais bem pagos do mundo ao lado de Messi e Cristiano Ronaldo. Mas em 2020 o governo travou a gastança impondo um teto aos salários, e depois veio a crise imobiliária, que deu um fim à gastança dos patrocinadores. A pandemia acabou afugentando boa parte das estrelas estrangeiras.

Enquanto isso, os chineses continuam se perguntando se um dia terão um futebol capaz de igualar a ascensão do país em outras áreas. Até hoje a China só se classificou para um Mundial, em 2002 —aliás o agora investigado Li Tie estava no time, que foi eliminado na primeira fase, sem marcar nenhum gol em três derrotas, uma delas para o Brasil.

Para William Bi, o novo escândalo de corrupção não é o maior obstáculo para a evolução do futebol chinês. Dirigentes sob suspeita serão substituídos por outros, vida que segue, acredita. Países com escândalos de corrupção até piores chegam ao topo do futebol mundial, como é o caso da Argentina, diz ele. 

O problema na China é que não há uma estrutura capaz de descobrir e desenvolver talentos, acredita Bi, que está escrevendo um livro sobre o plano de Xi de transformar a China numa potência futebolística.

— Um projeto dessa magnitude leva décadas para dar frutos. É verdade que os últimos anos foram marcados por fracassos e escândalos. 

Mas tudo pode ser resumido em um ponto: não há espaço na sociedade chinesa para que garotos com talento se tornem jogadores profissionais. Com certeza há muitos Messis e Neymars em algum lugar do país. Mas eles não têm oportunidades e treinamento de alto nível para crescer — diz Bi.


Fonte: O GLOBO