Presidentes de Chile, Uruguai, Equador e Paraguai discordaram da fala do brasileiro, que afirmou que ditadura na Venezuela é questão de 'narrativa'

As declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionando a existência de uma ditadura na Venezuela, sob alegação de que o regime de Nicolás Maduro é vítima de uma “narrativa” montada contra ele, atraíram fortes reações de alguns dos 11 presidentes sul-americanos que participaram nesta terça-feira da cúpula promovida pelo governo brasileiro no Palácio do Itamaraty, em Brasília. 

Em resposta às críticas, Lula afirmou que posicionamento dos chefes de Estado foram "no limite da democracia".

Sem citar Lula, o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, de direita, afirmou estar surpreso em ouvir que seria uma "narrativa" a ideia de que a Venezuela não é democrática, enquanto o presidente chileno, Gabriel Boric, de esquerda, afirmou que não se pode fazer "vista grossa" ao que ocorre no país governado por Maduro. 

Já em seu discurso no encontro, o presidente do Equador, Guillermo Lasso, afirmou que, "independentemente de diferenças ideológicas, devemos nos comprometer a revitalizar a integração visando um regionalismo no qual prevaleça a democracia".

— Não existe democracia onde existem presos políticos, onde existe diáspora de mais de sete milhões de cidadãos, muitos dos quais foram acolhidos em nosso país — afirmou Lasso sem transmitir seu discurso ao vivo nas redes sociais.

O Equador é um dos países da região para onde mais imigram os venezuelanos, juntamente com Colômbia, Peru, Chile, Argentina e, cada vez mais, o Brasil.

O presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, confirmou uma fonte de seu governo, mencionou em uma de suas falas os relatórios sobre violações dos direitos humanos cometidas na Venezuela elaborados, entre 2020 e 2022, pela equipe da ex-Alta Comissária da ONU, a ex-presidente chilena Michele Bachelet. 

No último documento apresentado por Bachelet antes de deixar o cargo, em meados do ano passado, sua equipe relatou o que ouviu em 21 prisões espalhadas pelo país, onde estão detidos 259 presos políticos. De acordo com as mesmas fontes paraguaias, Abdo Benítez também defendeu a necessidade de eleições limpas em todos os países da região, e a alternância no poder, afirmando que em um dos países presentes no encontro isso não acontece.

Durante encontro com Maduro que chamou de "histórico" na segunda-feira, Lula fez fortes críticas aos EUA pelo embargo econômico ao país vizinho, afirmando que as sanções econômicas são "pior do que uma guerra", e chamou de "narrativas" as acusações de que Caracas não vive sob um regime democrático.

— Fiquei surpreso quando se disse que o que se passou na Venezuela é uma narrativa. Vocês sabem o que pensamos a respeito da Venezuela, do governo da Venezuela — afirmou Lacalle Pou durante uma live, ignorando o status de encontro reservado entre os líderes que participam da reunião fechada, causando mal-estar entre membros do governo brasileiro.

Já o líder chileno pontuou haver uma discrepância entre a realidade e a visão de Lula:

— Nos alegra que a Venezuela retorne às instâncias multilaterais. Mas isso não significa fazer vista grossa. Há uma discrepância entre a realidade e as declarações do presidente Lula — disse Boric.

As críticas surgiram no mesmo dia em que Lula, em pronunciamento de boas-vindas à cúpula, defendeu a união regional, apesar da diferenças entre os países, para fazer frente aos atuais desafios globais.

— Na região, deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço da integração. Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos — afirmou Lula pela manhã. — Entendemos que a integração é essencial para fortalecimento da América Latina. Uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar no plano internacional uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha. O que nos reúne hoje em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região.

Em seu pronunciamento, Lasso pontuou a preocupação como o fato de que, "nos últimos anos, a integração regional se transformou em espaço no qual se legitimam as retóricas particulares de certas administrações".

— Uma razão pela qual a regionalização parece ter se enfraquecido é o fato de que organismos de integração deixaram de promover a democracia, o respeito pelos direitos humanos, e a pluralidade de ideias — afirmou, acrescentando ter certeza de que "o presidente Lula convocou esta cúpula com o propósito de que possamos gerar uma visão pragmática, que salvaguarde as liberdades, a democracia, o bem-estar, a segurança da cidadania e, sobretudo, a paz em nossos territórios".

Maduro não vinha ao país desde 2015, quando participou da posse do segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, que sofreu impeachment no ano seguinte. Sua presença no país não era permitida desde agosto de 2019, quando uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro proibia o ingresso no país do líder venezuelano e de outras autoridades do vizinho latino-americano.

Lula também afirmou que era difícil "conceber" que o Brasil tenha ficado tantos anos sem diálogo com a Venezuela e que achava a coisa "mais absurda do mundo" o não reconhecimento de Maduro como presidente por aqueles que "defendem a democracia".

— Achava a coisa mais absurda do mundo que pessoas que defendem a democracia negassem que você era presidente da Venezuela tendo sido eleito pelo povo, e o cidadão que foi eleito para ser deputado fosse reconhecido como presidente da Venezuela — afirmou.

Lula se referia ao dirigente opositor Juan Guaidó, que chegou a ser reconhecido como presidente interino pelos EUA e mais 50 países, incluindo o Brasil durante o governo de Bolsonaro, do início de 2019 a janeiro de 2023. Mas, após uma tentativa fracassada de tirar Maduro do poder a qualquer custo, o opositor acabou perdendo legitimidade interna e externamente.

— O Maduro sabe a narrativa que construíram contra a Venezuela durante tanto tempo, essa narrativa durante muitos anos o [assessor especial da Presidência e ex-chanceler] Celso Amorim andava pelo mundo explicando que não era do jeito que as pessoas diziam que era — afirmou Lula, defendendo que Caracas construa sua própria "narrativa".

Boric, além de dizer que não é possível ignorar o que acontece no governo de Maduro, afirmou que os direitos devem ser respeitados em todo lugar, "não importa a coloração política". No entanto, ele disse concordar com Lula de que as sanções econômicas contra os venezuelanos são pesadas.

— Vamos fazer um chamado aos Estados Unidos e à União Europeia para que levantem as sanções — disse o presidente do Chile.

Ele lembrou que, em 2024, haverá eleição na Venezuela. Disse que é preciso que todas as garantias de que o pleito seja transparente e correto sejam apresentadas.

— A mim interessa que os direitos humanos sejam respeitados — completou.

Os elogios de Lula a Maduro vão de encontro ao que afirmam ONGs e organismos internacionais. Dados da Anistia Internacional e das Nações Unidas mostram que o governo venezuelano viola os direitos humanos e é suspeito de crimes contra a Humanidade. Segundo essas entidades, são constantes as agressões a ativistas de direitos humanos, jornalistas e líderes indígenas. Estima-se que existam pelo menos 300 presos políticos no país que, ao mesmo tempo, enfrenta elevados índice de inflação, pobreza e desemprego.

De acordo com o promotor do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, há base razoável para acreditar que, na Venezuela, "um ataque sistemático contra a população civil foi cometido de acordo com uma política de Estado”.

As falas críticas sobre a Venezuela eram esperadas pelo governo brasileiro. Nas palavras de uma fonte que participou do evento, “estava no cálculo. Depois de tantos anos sem encontros, alguma farpa haveria”.


Fonte: O GLOBO