Autores de crimes de grande repercussão, que não estão em HCs, mas foram considerados inimputáveis, também passarão por crivo de médicos que liberarão parte dos 4.680 apenados de unidades hospitalares

O pente-fino em apenados inimputáveis, dentro do projeto de pôr fim aos hospitais de custódia, também vai decidir o destino de Adélio Bispo, autor da facada no ex-presidente Jair Bolsonaro, e de Dyonathan Celestrino, conhecido como "Maníaco da Cruz". 

A medida será tomada porque, além dos 4.680 presos nas unidades hospitalares, há casos de criminosos internados por razões psiquiátricas em presídios comuns. Adélio está na Penitenciária federal de Campo Grande e Celestrino no Instituto Penal de Campo Grande (IPCG).

Os dois serão analisados junto com a população de 32 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) do país, cujas atividades serão encerradas. O prazo para que essas unidades fechem em definitivo se encerra em maio de 2024.

A junta médica que fará a análise dos casos é formada por integrantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Saúde. O processo de esvaziamento dos hospitais de custódia foi regulamentado no início do mês pela resolução 486 do CNJ.

A nova determinação, que estabelece priorização do tratamento psiquiátrico no SUS, não significa que todos os presos serão soltos em um ano, pois a resolução diz que cada caso é um caso, e as decisões judiciais serão soberanas. Assim, há possibilidade de presos inimputáveis continuarem internados, nesse caso em leitos de hospitais ou de outro equipamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Questionado pelo GLOBO, o CNJ afirmou que Adélio Bispo é o único preso federal, de que se tem notícia, que cumpre medida socioeducativa no país. O Tribunal Regional Federal da 3ª região confirmou que não há outros casos do tipo na sua área de atuação. 

Como foi considerado inimputável pela justiça, ou seja, "incondenável" por não compreender a ilicitude de seu crime, devido a uma condição psiquiátrica, Adélio cumpre a chamada medida de segurança. Sua internação deveria ser no hospital psiquiátrico de Barbacena (MG), mas, como a unidade mineira está interditada, ele cumpre a pena no presídio federal de Campo Grande.

Diferentemente de outros inimputáveis que ficam ou nos HCTP ou em "alas psiquiátricas" de presídios comuns, Adélio está em um espaço destinado a presos com problemas de saúde em geral. Portanto, essa ala não será fechada, mas, assim como todos os presos que cumprem medida de segurança, "o caso do Adélio Bispo será analisado individualmente para a tomada de decisão sobre a conduta mais adequada", explicou o CNJ.

A Lei Antimanicomial (lei federal 10.216, de 2001) já vetava a internação permanente de pessoas com transtornos mentais em "instituições asilares". No entanto, como não havia uma orientação clara para o sistema penitenciário, juízes se apoiavam em diferentes procedimentos, explica Leo Pinho, diretor da Comissão Nacional de Direitos Humanos. Com a resolução do CNJ, as regras ficarão mais claras, diz.

— A resolução CNJ não cria jurisprudência ou novas leis , apenas exige a aplicabilidade das leis existentes no sistema prisional. Essa resolução vai também exigir do judiciário as avaliações melhores inclusive na definição da inimputabilidade — diz Pinho, que cita a necessidade de se melhorar a avaliação dos casos de inimputáveis.

Além do fechamento dos hospitais de custódia, a resolução do CNJ também determinou a interdição de "estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil". Por isso, alas psiquiátricas de presídios comuns também precisarão ser fechadas.

Ministério Público e tribunais estudam melhor forma de aplicar resolução

A notícia de que presos que cumprem medida de segurança seriam "soltos" gerou uma reação de diversas entidades médicas e de setores do judiciário. O GLOBO procurou os Ministérios Públicos de estados que possuem hospitais de custódia. Em nota, o MP do Ceará se mostrou preocupado com a " escassez de espaços adequados para tratamentos de saúde mental em meios abertos, como prevê a Lei Antimanicomial". 

Segundo o MPCE, a estrutura do Raps "pouco evoluiu nestes últimos 20 anos". A nota citou, como um "desafio", o caso de 19 internos nos HCTP do estado, "que já cumpriram medidas de segurança e possuem relatórios psicossociais favoráveis e até alvarás de desinternação, mas seguem institucionalizadas em face do rompimento dos vínculos familiares e/ou comunitários".

Por isso, o Ministério Público do Ceará informou que "tem discutido e exigido providências mais efetivas do Estado para solucionar a situação de pacientes de longa duração psiquiátrica, como a criação de vagas de residências terapêuticas". Já o MPSP respondeu que "o assunto é complexo" e "estuda o problema, em conjunto com outras instâncias da segurança pública do Estado".

Outro órgão do judiciário que se manifestou foi o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que disse ter criado um grupo de trabalho, com juízes, promotores, defensores, OAB, Seape, servidores da seção psicossocial do Tribunal e a Secretaria de Saúde do DF," para debater a melhor forma de cumprir a resolução".

Em relação à necessidade de melhorar a estrutura da Raps, o Ministério da Saúde anunciou que vai investir R$ 21 milhões para a abertura de leitos de saúde mental em hospitais gerais e a habilitação de novos 24 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O secretário nacional de Atenção Especializada à Saúde do governo, Helvécio Magalhães, explicou que os presos só poderão voltar às ruas após laudo médico de uma equipe multiprofissional e a permissão do juiz.

Presos por crimes famosos cumprem medida de segurança

Como os dados dos processos criminais dos inimputáveis são, na maioria dos casos, sigilosos, não há uma consulta pública com detalhes sobre todos os presos. Mas, como O GLOBO publicou na semana passada, dados da Secretaria nacional de Políticas Penais (Senappen) apontam que a maioria das 4680 pessoas internadas nos HCTP está internada em caráter provisório (1.818, ou 39% do total). O crime mais recorrente entre os presos é o roubo, seguido de homicídio e tráfico de drogas.

A reportagem apurou informações sobre casos de presos por crimes famosos. Além de Adélio Bispo e Celestrino — que matou três pessoas no MS porque elas não seguiam "os preceitos de Deus" —, há também outros cumprindo medidas de segurança por crimes graves como Roberto Aparecido Cardoso, o "Champinha", que participou do assassinato de um casal de estudantes em 2003, e Francisco da Costa Rocha, o "Chico Picadinho", que matou duas mulheres nas décadas de 60 e 70.

Confira outros inimputáveis presos por crimes graves:

Roberto Aparecido Cardoso, o "Champinha": Participou da tortura e do assassinato do casal de estudantes Liana Friedenbach e Felipe Silva Caffé, em 2003. Eles foram rendidos enquanto acampavam em Embu-Guaçu (SP). Champinha foi detido como menor de idade e depois transferido para a Unidade Experimental de Saúde, de São Paulo.

Francisco da Costa Rocha, o "Chico Picadinho": Está no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico "Dr. Arnaldo Amado Ferreira", pelo assassinato de duas mulheres nas décadas de 60 e 70.

Marcelo Costa de Andrade, o "Vampiro de Niterói": Confessou o assassinato de 14 crianças nos anos 90. Ele cumpre medida de segurança no Hospital Henrique Roxo.

Adaylton Nascimento Neiva, o "Maníaco do Novo Gama" : Neiva confessou o assassinato de 10 mulheres e crianças, e o estupro de três mulheres. Está na ala psiquiátrica do "Colmeia", instalada na Penitenciária Feminina do Distrito Federal.

Adélio Bispo:
Ele atacou o ex-presidente Jair Bolsonaro, durante a campanha presidencial em 2018, em Juiz de Fora, Minas Gerais. A defesa dele alegou que o crime foi o ataque foi "fruto de uma mente atormentada e possivelmente desequilibrada" por um problema mental.


Fonte: O GLOBO