Analistas veem desafio em declarações improvisadas — como sobre a guerra na Ucrânia —, na nova configuração geopolítica e até no papel de ressonância das redes sociais, mas avaliam que há espaço para acertos

Tentando recolocar o Brasil no cenário internacional após quatro anos de governo Bolsonaro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou 18 dos 120 dias iniciais de seu mandato fora — foram quatro viagens por sete países. Mas suas declarações sobre a guerra na Ucrânia e contratempos internos acabaram muitas vezes atraindo mais os holofotes do que as dezenas de acordos fechados durante as viagens. 

O complicado equilíbrio entre política interna e externa é um desafio para o presidente, além de suas falas improvisadas, analisam especialistas ouvidos pelo GLOBO. As mudanças no cenário internacional nos últimos 20 anos também podem atrapalhar o objetivo de Lula, assim como a entrada em cena de um novo ator, as redes sociais.

O presidente deu o pontapé inicial em sua agenda internacional ainda em janeiro, com uma passagem pela Argentina, onde se encontrou com o presidente Alberto Fernández e participou da cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), antes de fazer uma escala em Montevidéu. 

No mês seguinte, embarcou para três dias em Washington, com compromissos que incluíram um encontro com o presidente Joe Biden e o anúncio de apoio dos EUA ao Fundo Amazônia. Em março, passou cinco dias na China, onde assinou 15 acordos, a maioria comerciais e de cooperação, e deu declarações vistas como antagônicas a Washington em um momento de forte rivalidade entre as duas potências.

Na volta, durante uma passagem por Abu Dhabi, Lula voltou a ser alvo de críticas americanas e europeias após equiparar as responsabilidades de Moscou e Kiev na invasão russa da Ucrânia. Nos últimos dias, esteve em Portugal e Espanha, onde tentou estancar a crise após as declarações, com relativo sucesso. 

Em Portugal, assinou 13 acordos, entre eles de validação de grau escolar e habilitação, e aproveitou para entregar o Prêmio Camões a Chico Buarque — em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a assinar a documentação para que o artista recebesse a mais prestigiosa horaria das literaturas em língua portuguesa.

— A imagem que o Lula criou há 20 anos em relação à presença dele e do Brasil na geopolítica mundial criou uma forte expectativa em relação a esse governo e de como Lula agora conduzirá sua política externa e firmará suas parcerias. 

Por isso, suas declarações sobre a Ucrânia colocaram em dúvida qual vai ser o papel do país, pelo menos por parte do lado ocidental — explica Valentina Sader, especialista em Brasil e América Latina do Atlantic Council. — Apesar de ele ter tentado consertar suas falas, houve uma interpretação de que tentou igualar as responsabilidades da Ucrânia e da Rússia na guerra, e isso foi um problema.

Muita coisa mudou desde que Lula assumiu pela primeira vez o cargo de presidente do Brasil, em 2003, quando a política externa foi apresentada como uma das principais vitrines de seu governo. Em seus dois primeiros mandatos, o presidente brasileiro conseguiu, com bastante êxito, impulsionar processos de integração regional, como a Unasul, e exercer grande liderança em foros multilaterais ou regionalmente. Apenas em seu primeiro mandato, o chefe de Estado passou 13,2% do tempo em viagens ao exterior.

Fábio Borges, diretor do Instituto Latino-Americano de Economia Sociedade e Politica da Unila, explica que tanto o cenário interno quanto o externo são muitos mais difíceis e complexos que nos dois governos. As falas improvisadas do presidente, assim como algumas gafes, também ganham uma dimensão muito maior com as redes sociais.

— Do ponto de vista externo, vejo uma linha contínua aos dos governos anteriores, mas em um cenário muito mais desafiador. Individualmente, vejo uma certa dificuldade de entender que o cenário internacional é mais hostil, tanto pela pandemia quanto pela guerra da Ucrânia — afirma Borges.

— Ainda assim, não vejo equívocos em sua posição quanto à guerra. Pelo contrário, o posicionamento de não se omitir e defender a paz é tradicional na nossa diplomacia. Sua aproximação com a China, que também gerou críticas por parte dos Estados Unidos, é normal em termos pragmáticos. O tamanho do comércio com a China é três vezes maior que com os EUA.

De acordo com Gustavo Poggio, professor do departamento de Ciência Política do Berea College, em Kentucky, além da mudança do cenário geopolítico nos últimos 20 anos — que fez, por exemplo, a China passar de uma possível parceira comercial para uma rival estratégica do Ocidente —, que tornou certos temas mais difíceis de serem encarados, o contexto em que Lula se insere também exige uma atenção maior do presidente com certos novos fatores, que passaram a ser levados em consideração no jogo político.

— Lula sempre foi de falar aquilo que agrada a determinados públicos, mesmo que em alguns momentos fosse contraditório. Temos que ver como isso vai se dar na era das redes sociais, porque esse contexto tecnológico deixa o cenário mais complexo. Teremos que ver por quanto tempo o Brasil consegue manter uma posição de ambiguidade, mais independente, ou se vai se alinhar a algum dos lados dessa disputa por protagonismo — disse.

Já Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional da UFMG, acredita que o presidente vem adaptando sua política externa e cita como exemplo a ênfase à questão do meio ambiente e transição para a economia verde, "que não tem nada a ver com o foco em combustíveis fósseis e pré-sal, e com o nacionalismo extrativista do início do século XXI".

— Seguramente não é a mesma política exterior de 2003. Eu diria que o Brasil é mais arrojado e mais agressivo em algumas ações desde o início deste mandato.

Se o cenário externo é desafiador, internamente Lula ainda precisa lidar com um ambiente hostil, de radicalização, lembra Borges. Questões internas como a aprovação do arcabouço fiscal e a saída do ministro Gonçalves Dias do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) respingaram nas viagens, onde Lula foi questionado sobre os temas em coletivas com jornalistas. O que é natural, avaliam os analistas. Sendo ao mesmo tempo chefe de Estado e de governo, Lula acaba sendo um fio condutor entre a política interna e externa.

Os acordos assinados, no entanto, acabaram ficando em segundo plano na cobertura jornalística, interna e externamente. Mesmo assim, para o professor da Unila, há potencialidades para que uma política externa bem-sucedida traga bons resultados para a política interna.

— Em geral, os temas externos não são dominantes no debate público. Mas se Lula for bem-sucedido em acordos que ajudam a consolidar a economia e gerar emprego, mesmo que não haja essa conexão direta, servirá para acalmar a política interna e gerar melhorias para a população — avalia. 

— Sua atuação também pode trazer de volta a confiança que o Brasil perdeu nos últimos tempos, em questões como a ambiental, de responsabilidade fiscal e acordos de integração. Lula foi muito bem recebido na China, Portugal, Espanha, recolocando o país numa posição que merece estar.

Apesar das declarações sobre a Ucrânia e de seus reflexos nos EUA e na Europa, que reagiram de maneira dura às falas do presidente, a especialista da Atlantic Council também é otimista ao avaliar essas primeiras turnês internacionais.

— Historicamente o país tem como princípio trabalhar com todos os atores, numa relação de beneficio mútuo, e foram assinados acordos importantes para o Brasil. Além da China, a visita aos EUA foi relevante, assim como sua passagem pela Espanha, que vai assumir a presidência da União Europeia nos próximos meses e anos — avalia Sader. 

— Agora, Lula precisará se envolver um pouco melhor em relação aos planos propostos para a guerra na Ucrânia. O ideal é que não pense apenas em um cessar-fogo imediato, mas em uma resposta bem estruturada envolvendo os dois lados, para que seja uma paz sustentável e não haja novas ameaças no futuro.


Fonte: O GLOBO