A partir de relatos de russas, ucranianas e bielorrussas, o sociólogo Gustavo Gumiero destaca o impacto do conflito na vida de pessoas comuns

Quando decidiu passar o Ano Novo de 2021 para 2022 em Kiev, o sociólogo brasileiro Gustavo Gumiero não imaginou que testemunharia os últimos dias de uma Ucrânia em paz. 

Autor do livro "Gritos da guerra: o conflito Rússia-Ucrânia na voz das mulheres que sofrem", lançado em fevereiro pela editora Mostarda, o escritor apresenta as diferentes faces do confronto a partir do relato de seis mulheres de nacionalidades ucraniana, russa e bielorrussa — povos que, num passado não tão distante, já foram considerados "irmãos".

Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o socióloga conta como a obra da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura, o inspirou a escrever o livro. 

Também fala sobre as assimetrias que observou em sua viagem à Ucrânia, 50 dias antes de eclodir a guerra, e à Rússia, já nos primeiros meses de conflito. De um lado, a descrença de que uma invasão estaria no horizonte e pudesse durar tanto tempo. Do outro, a aparente normalidade forjada sobretudo pela forte propaganda russa.

O que mais te impressionou durante sua passagem pela Ucrânia?

Estava na Ucrânia 50 dias antes de eclodir a guerra, passei lá o Ano Novo de 2021 para 2022. Os ucranianos não acreditavam que as ameaças de guerra se concretizariam. No fundo, acho que ninguém acreditava. 

Mas, quando as embaixadas dos Estados Unidos e do Reino Unido começaram a alertar os cidadãos para que saíssem da Ucrânia, sentiram que uma invasão poderia acontecer. Percebi depois um forte sentimento anti-Rússia por parte das ucranianas, um patriotismo exacerbado em que diziam "eu sou ucraniana, e nós somos Europa". Mas creio que esse nacionalismo é mais passional do que racional.

E na Rússia?

Estive na Rússia por dois meses, com a guerra já em andamento, e lá a vida corria normalmente. A propaganda na Rússia é muito grande. E [Vladimir] Putin, desde que foi alçado ao cargo de presidente pela primeira vez em 2000, soube usar muito bem essa arma e aos poucos ir minando as instituições.

Pelo o que vi [quando estive lá], acredito nas pesquisas que dizem que a maioria dos russos são a favor — ou não se opõem — à guerra. Mas a gente precisa pensar também que a população russa não tem direito de expressar sua opinião, rola muita censura.

Houve uma queda acentuada na aprovação do Putin quando ele convocou 300 mil reservistas em setembro, mas ela ainda é grande. A arma da propaganda é muito forte: há cartazes em pontos de ônibus, banners de heróis da guerra espalhados pelas ruas. 

Hoje, crescem as famílias afetadas diretamente pelo conflito, que tiveram filhos ou parentes que viraram soldados. Mas elas têm duas maneiras de encarar as coisas quando um deles morre: ou a culpa é dos ucranianos, então a Rússia está certa; ou o Putin não deveria ter feito isso — mas, nesse momento, entra a questão econômica, já que elas recebem um valor de indenização pela baixa.

Nos seis depoimentos que você apresentou no livro, três são de mulheres da Bielorrússia, um país que não está diretamente envolvido no conflito. Como essas histórias ajudam a entender o contexto da região?

Os relatos que eu recebia da Bielorrússia eram um pouco de pânico, apesar de eles não estarem diretamente envolvidos. Ultimamente a Bielorrússia tem se tornado uma espécie de satélite da Rússia, principalmente pela necessidade do presidente [Alexander] Lukashenko de ter o apoio do Putin para continuar governando após as suspeitas sobre as eleições de 2020. Ele abriu as portas do país para a Rússia fazer o que quiser, então uma parte da invasão também foi feita pela Bielorrússia.

As bielorrussas foram tomadas por um sentimento de pânico generalizado quando eclodiu a guerra. As passagens aéreas, que antes custavam menos de 100 euros, foram para 2 mil euros — e muitas se sujeitaram a pagar por temer que o conflito se estendesse também para lá. Precisamos lembrar que, há não muito tempo, a Bielorrússia foi arrasada pelo Exército nazista. Creio que o medo de que algo assim aconteça novamente foi passado de pai para filho.

O que te inspirou a contar a história da guerra na Ucrânia sob o olhar das mulheres?

Tinha uma amiga ucraniana que, quando estive no país em 2020, falou: "Você precisa escrever sobre a história da Ucrânia". Ela já era uma espécie de refugiada — viveu no Donbass, cujos territórios de Donetsk e Lugansk foram palco de disputas desde 2014, e precisou sair de lá e ir para Kiev quando tinha cerca de 22 anos. Dois anos depois, eclode a guerra e aquelas palavras foram um pouco proféticas.

Uma das minhas maiores fontes de inspiração foi a Svetlana Aleksiévitch, escritora bielorrussa que ganhou o Prêmio Nobel em 2015. 

No seu livro mais importante, "A guerra não tem rosto de mulher", ela entrevista muitas mulheres que fizeram parte da Segunda Guerra Mundial — essa guerra que é contada sempre de homens para homens. Você quase não vê heroínas em guerras, principalmente nas mais recentes. Isso me inspirou a destacar a voz dessas mulheres, porque na geopolítica comandada por homens, elas são as que mais sofrem.

Quais os maiores desafios de falar sobre uma guerra que ainda está em andamento?

A própria Svetlana fala que "o sofrimento é o grau mais elevado de informação". Então, ao mesmo tempo que você tem muita riqueza nos dramas e traumas relatados por essas mulheres, muitas não conseguiram me contar o que haviam passado porque ainda estava muito recente. 

Achei que eu teria muito mais depoimentos, mas sei que no fundo consegui menos porque muitas ainda carregavam a dor da guerra. Elas não conseguiam transformar em palavras todo o sentimento vivido. E é uma pena que não consigam, porque esses gritos da guerra, materializados pela escrita, seriam muito bem-vindos para que as pessoas soubessem o que se passa nesses contextos.


Fonte: O GLOBO