Americanos argumentam que aplicativo manda dados para governo chinês, mas especialistas dizem que riscos são similares aos representados por outros aplicativos

A ofensiva contra o TikTok, aplicativo das dancinhas e vídeos curtos que ditam tendências na internet, é um dos raros pontos em comum entre o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e seu antecessor, Donald Trump. 

O republicano tentou vetar o aplicativo, mas foi barrado pela Justiça. Agora, o governo democrata deu um ultimato: ou a plataforma se desvincula de sua controladora chinesa, a ByteDance, ou será banida.

O argumento-chave é que o TikTok representa um risco para a segurança nacional, coletando dados de usuários que são usados pelo governo chinês para espionagem. Críticos argumentam que os perigos são similares aos representados por outros aplicativos — o imbróglio, afirmam, é o mais recente capítulo da cruzada de Washington para conter a ascensão de Pequim. A verdade talvez esteja no meio-termo.

Por que os EUA e seus aliados fazem uma ofensiva contra o TikTok?

Com mais de 1 bilhão de usuários ativos, o TikTok tem mais visitas que o Google com seu algoritmo que decide o que será mostrado a partir das preferências do usuário;

autoridades ocidentais acusam o aplicativo de passar informações de usuários para o governo chinês, citando legislações de Pequim para suas empresas de tecnologia;

especialistas, no entanto, afirmam que o risco do TikTok para a segurança não é tão diferente do representado por redes como o Facebook;

para críticos, a cruzada contra o aplicativo é indissociável das tensões sino-americanas nas mais diversas frentes;

Trump já havia tentado vetar a plataforma chinesa, mas foi barrado pela Justiça;
nesta semana, o governo Biden voltou a ameaçar banir a ferramenta caso ela não seja desvinculada da ByteDance;

chineses argumentam que decisão americana é um "teatro político" arbitrário e "injustificável";
organizações dos EUA afirmam que medida violaria Primeira Emenda da Constituição americana.

O que é o TikTok?

O TikTok tem hoje mais de 1 bilhão de usuários ativos, além de ter sido o aplicativo mais baixado do mundo em 2022. Teve mais visitas que o Google e conseguiu reter seus usuários por mais tempo que o YouTube. Parte disso deve-se a seu apelo entre os mais jovens, que inclusive o preferem ao Google para fazer buscas.

Parte do sucesso deve-se ao fato de o usuário não escolher o que lhe é mostrado: é o algoritmo que decide o que terá mais êxito para manter os olhos na tela, independentemente de onde venha. O conteúdo pode ser de um amigo ou de uma pessoa do outro lado do mundo. O modelo provou-se tão bem-sucedido que levou concorrentes como o Instagram e o YouTube a incorporarem funções parecidas.

— Primeiramente, as pessoas gostam dos vídeos. Depois, as ferramentas de criação de vídeos no TikTok são muito acessíveis e inspiradoras para quem grava vídeos de forma amadora. Mas o elemento crucial é que o TikTok realmente não é uma rede social — disse ao El País o analista Ben Thompson, referindo-se ao fato de o conteúdo primordialmente consumido no aplicado ser para entretenimento, não necessariamente de conexão entre conhecidos ou amigos.

Como surgiu o aplicativo?

O TikTok — brincadeira com a onomatopeia do relógio, e não uma homenagem ao hit de 2009 da cantora Kesha — é a segunda versão de uma ferramenta lançada em 2014 pelos empresários chineses Alex Zhu e Luyu Yang, o Musical.ly. Em 2017, a ferramenta já acumulava 100 milhões de usuários mensais ativos, sendo particularmente popular entre adolescentes que dublavam músicas e clipes.

O Musical.ly foi comprado em novembro daquele ano pela firma de tecnologia chinesa ByteDance, que desembolsou cerca de US$ 1 bilhão (R$ 6,43 bilhões, em valores atualizados) em sua tentativa de penetrar no mercado americano. A firma já tinha o TikTok, seu aplicativo com funções parecidas ao Musical.ly, mas bem menor, que no mercado chinês era conhecido como Douyin.

Em agosto de 2018, as duas ferramentas foram fundidas: o Musical.ly ganhou um novo logo e o nome de TikTok. E a aposta da ByteDance provou-se acertada: estimada em US$ 220 bilhões, é hoje a startup mais valiosa do mundo. Só o TikTok tem valor estimado entre US$ 40 bilhões (R$ 209,27 bilhões) e US$ 50 bilhões (R$ 261,58 bilhões), segundo estimativas da Bloomberg.

Qual é o argumento para banir o Tik Tok?

Reguladores e parlamentares ocidentais há anos demonstram preocupações de que o TikTok e a ByteDance possam passar informações dos usuários, como mensagens e localizações, ao governo chinês. Embasam seu argumento na Lei Nacional de Inteligência, que dá a Pequim permissão para fiscalizar todas as empresas tecnológicas do país e as obriga a ceder ao governo quaisquer dados solicitados, sem necessidade de ordem judicial.

Os americanos argumentam também que o algoritmo do TikTok pode ser usado por Pequim para manipular as sugestões de conteúdo e disseminar a desinformação. Os também pouco transparentes algoritmos de redes sociais americanas como o Facebook e o Twitter também tiveram papel-chave para a disseminação de informações falsas que impactaram diversas eleições pelo planeta e o combate à pandemia de Covid-19. Bani-los nunca foi algo seriamente debatido, no entanto.

Os medos são legítimos?

Para o usuário comum, os riscos não são tão maiores que os do Facebook, apesar de isso não ser necessariamente um alento, concluiu uma investigação recente do jornal Washington Post. Há motivos para suspeitar do TikTok: sabe-se, por exemplo, que espionou jornalistas da Forbes que escreviam sobre ele. Também veio à tona que usuários da empresa em Pequim tiveram acesso a dados de usuários americanos.

— Há certo temor sobre o que o TikTok faz, com os direitos que o aplicativo tem sob os dados pessoais e os vídeos dos usuários, mas ainda assim tem menos poder e acesso que o Facebook em seu telefone — disse ao El País Diego Naranjo, assessor político da EDRI, organização europeia que trabalha pela defesa dos direitos humanos e privacidade digital.

Naranjo lembrou também as revelações de Edward Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), que em 2013 vazou documentos secretos do governo sobre existência de um sistema de vigilância mundial das comunicações e da internet. Devido às revelações, "sabemos há anos que muitos aplicativos americanos que consideramos seguros dão à inteligência americana acesso a tudo que fazemos".

E banir o TikTok não parece ser uma medida definitiva para evitar que os dados dos usuários americanos acabem nos servidores chineses: há mais de 28 mil aplicativos que usam os kits de desenvolvimento de software do TikTok, ferramentas de integração entre os sistemas que permitem o compartilhamento de informações, revelou nesta semana uma reportagem do site Gizmondo. É algo relativamente comum entre as redes sociais, que obtêm dados a partir de terceiros ou de cookies, os rastreadores de navegação.

O mesmo Gizmondo revelou há três anos que plataformas como Facebook, Twitter, YouTube e Gmail, por exemplo, expõem os dados de usuários americanos tal qual o TikTok. Isso porque têm contratos com empresas de publicidade chinesas.

Por que vetar o aplicativo?

Por questões geopolíticas. A China é a segunda maior economia do planeta e sua ascensão ameaça a hegemonia global americana e a ordem vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Washington reconhece que a guerra na Ucrânia é o desafio de política externa mais imediato, mas, em longo prazo, Pequim é uma ameaça maior que Moscou.

Os países disputam em frentes tecnológicas, territoriais, econômicas e até espaciais. A competição se acirrou durante os anos de Trump na Casa Branca, abordagem que não foi aliviada por Biden.

A primeira tentativa de vetar o TikTok veio ainda durante os anos do republicano, que emitiu ordens executivas impedindo a rede de continuar a operar normalmente em solo americano sob o argumento de que se tratava de uma ameaça à segurança nacional. A medida determinava que a plataforma encontrasse um comprador nos EUA para que pudesse continuar a funcionar no país.

Chegou-se a um acordo com a Oracle e com o Walmart, que comprariam 20% do aplicativo. Trump inicialmente aprovou o negócio, mas não chegou a ratificá-lo. Mudou de ideia dias depois, contudo, afirmando que a Bytedance não poderia continuar a fazer parte do negócio, algo que a empresa contestou na Justiça.

Os tribunais determinaram que Trump não poderia vetar o TikTok, dando razão para os advogados do aplicativo e seus argumentos de que o governo americano não considerou alternativas razoáveis e de que a decisão foi arbitrária.

Como o governo Biden lida com a situação?

Em seu primeiro ano de governo, Biden suspendeu o decreto de Trump e emitiu uma nova ordem demandando uma revisão de uma série de aplicativos estrangeiros que podem representar uma ameaça à segurança dos EUA. 

Desde quando os republicanos estavam no poder, o TikTok negocia com a Casa Branca para tratar das questões que dizem respeito à segurança nacional.

Diante disso, o aplicativo concordou no ano passado em implementar uma série de mudanças para tratar das preocupações, com investimentos ao redor de US$ 1,5 bilhão. Entre elas, a proposta de trazer a gigante americana de tecnologia Oracle para hospedar dados de usuários dos EUA e revisar seu software, além de indicar um conselho de supervisão de três pessoas aprovado pelo governo. 

Muitas dessas ações já estão em andamento, mas não foram consideradas suficientes pelo Comitê de Investimento Estrangeiro dos EUA.

Desde novembro, mais de 25 estados americanos baniram a plataforma em celulares e aparelhos oficiais, enquanto universidades vetaram o acesso por suas redes de wi-fi. No início do mês, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara votou para aprovar uma lei que daria ao presidente o poder de banir a plataforma por completo — algo similar ao que a Justiça impediu Trump de fazer.

Em dezembro, uma lei para banir o TikTok de aparelhos do governo federal foi aprovada pelo Congresso. Países como o Canadá, o Reino Unido e a Comissão Europeia, o Executivo da União Europeia, adotaram medidas similares. Na terça, contudo, veio a notícia do ultimato da Casa Branca: ou o TikTok se desvincula da ByteDance, ou será vetado.

O que dizem os chineses?

O TikTok diz que armazena dados de usuários americanos em servidores instalados nos EUA. Funcionários sediados na China têm acesso, afirma a empresa, mas de forma estrita e limitada, e sem compartilhamento com o governo. O imbróglio, afirma, não passa de um "teatro político".

Em um comunicado nesta semana, disse que "se proteger a segurança nacional é o objetivo, o desinvestimento não resolve o problema", pois não culminaria em mudanças na política de dados. Sob o comando de novos donos, diz Washington, o algoritmo seria refeito e deixaria a plataforma menos vulnerável. Apontam também para as mudanças já concordadas e em curso para melhor adequar o aplicativo às demandas da Casa Branca.

Há alguns dias, o presidente da China, Xi Jinping, lamentou a "política de contenção, cerco e repressão". Na quinta, por meio de sua Chancelaria, Pequim disse que os ataques são "injustificáveis" e que os americanos até agora "não produziram evidência" de que o TikTok representa um risco de segurança.

— Preocupações com segurança dos dados não devem ser usadas como ferramenta para alguns países extrapolarem com o conceito de segurança nacional, abusar de seu poder estatal e reprimir injustificavelmente os negócios de outros países — disse o porta-voz Wang Wenbin.

O governo dos EUA pode banir um aplicativo?

A Índia baniu o TikTok no meio de 2020, custando ao ByteDance um de seus maiores mercados. Foi um dos 59 aplicativos chineses derrubados no segundo país mais populoso do planeta, sob o argumento de que transmitiam dados para servidores no exterior.

No caso americano, entretanto, a iniciativa pode esbarrar na Primeira Emenda da Constituição americana, que diz respeito ao direito de expressão. O argumento é compartilhado por organizações como a União das Liberdades Civis Americanas (ACLU, na sigla em inglês), que no mês passado enviou uma carta à Comissão de Assuntos Exteriores da Câmara em protesto contra a lei.

Uma série de organizações defendem que, em vez de banir o TikTok, a situação é uma boa oportunidade de redirecionar a atenção dos parlamentares para criar leis mais eficazes de proteção à privacidade. (Com El País e New York Times)


Fonte: O GLOBO