Estudioso do Partido Comunista e de sua evolução histórica, José Medeiros da Silva diz que, desde a sua chegada, em 2007, 'mudou tudo' no país

O potiguar José Medeiros da Silva chegou à China em 2007, e se depender dele, é onde pretende ficar. Casado com uma chinesa, com quem tem dois filhos, Medeiros é professor de língua portuguesa e cultura brasileira na Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, na bela cidade de Hangzhou.

Em conversa com a coluna, ele falou sobre as enormes diferenças entre a China de 2009, ano da última visita de Lula ao país, e a que o presidente encontrará ao desembarcar em Pequim na semana que vem. Nascido na zona rural de Touros, pequeno município do Rio Grande do Norte, Medeiros desembarcou na China quando concluía sua tese de doutorado pela USP sobre os aspectos políticos na questão camponesa na China. 

Estudioso do Partido Comunista da China e de sua evolução histórica, ele diz que, desde a sua chegada, “mudou tudo” no país.

Como a China e os objetivos do país mudaram desde a sua chegada?

A China em 2007 estava com foco no comércio, no mercado e no desenvolvimento. Naquela época a rede de trens de alta velocidade estava apenas começando. Não era uma China ideológica, o país estava consolidando o processo de reforma e abertura e o foco estava nas oportunidades de negócios para o enriquecimento material. 

Quando eu cheguei em Xian ainda era difícil achar até café e pão. Fiz uma viagem de trem a Xangai e foram 24 horas em pé. Hoje de trem-bala dá 6 horas. É outra China, com outro modelo de consumo, o país se urbanizou e a área de serviços tornou-se muito desenvolvida, o que não havia antes, quando os camponeses migravam para as cidades para trabalhar. Hoje os filhos dos camponeses estão formados em universidades e têm posses nas cidades. Eu tenho alunos doutores. Mudou tudo.

A mudança maior foi a partir da chegada ao poder de Xi Jinping?

É realmente uma nova era. A China de Deng Xiaoping cumpriu sua missão, que era enriquecer. O Xi percebeu que se deixasse isso continuar eles perderiam a China, porque ela se tornaria liberal demais. Com um partido forte, mas no modelo ocidental. 

Claro que houve uma luta de poder. Xi percebeu que a questão não era mais a riqueza, mas se a China seria protagonista ou apenas mais um acessório na ordem que existia. É a tese do Reagan e do Fukuyama, de que o trem da história para na democracia liberal. Xi dá um freio nisso e volta ao passado chinês, misturando o fator econômico com o ideológico numa tentativa de restaurar a civilização chinesa para encerrar o “século de humilhação”. 

Com Xi a relação da China com o mundo não está mais focada na questão do comércio, como era na última visita do Lula. O comércio agora é um meio de posicionar a China no mundo. Em 2009 a China olhava para o Brasil como um parceiro de negócios que lhe ajudasse a crescer economicamente. Agora ainda há um olhar para o comércio, claro, mas com um foco em como o Brasil pode ajudar a China a ter um ambiente externo mais favorável, a fim de consolidar o seu projeto nacional.

Como era ser um brasileiro na China em 2009 na comparação com 2023?

Naquela época, não só os brasileiros, mas estrangeiros em geral, ainda eram uma novidade, principalmente no interior. Quando eu ia aos pequenos lugarejos era quase como se estivesse chegando um extraterrestre. 

E brasileiro mais ainda, porque havia poucos. Com o processo de urbanização houve um aumento no contato com os estrangeiros, por causa dos negócios. Meus alunos, por exemplo, foram fazer negócios em Angola, no Brasil e em outros países com investimentos chineses, e aí começou a haver um fluxo de intercâmbio. 

A imagem dos estrangeiros passou a ser mais normal. Mudou muito, mas é curioso que o estrangeiro voltou a ser novidade durante o período em que o país ficou fechado por causa da Covid.

Como é hoje?

A primeira coisa que vem à cabeça dos chineses quando se fala em Brasil é futebol, no máximo samba. Mas eu passei a ter contato com chineses que estudam o Brasil. Uma das coisas que me chamam atenção é que os chineses sempre olharam o Brasil como parte de um bloco. É uma crítica que eu faço à China. 

Eles não olham para o Brasil como um país, mas no conjunto da América Latina. Não à toa eles formaram mecanismos para dialogar com o continente como um todo, assim como fazem com a África. E isso diminui a força do Brasil. Acho que o governo brasileiro deveria deixar isso mais claro, o diferencial do país.

Há mais interesse em aprender português. Qual o motivo?

Cresceu muito. Quando cheguei havia menos de dez cursos, hoje passa de 30 universidades. A diferença é que em 2007 os investimentos chineses no Brasil eram pequenos. Hoje há muitas empresas chinesas no Brasil e em outros países de língua portuguesa. Se antes o estudo do idioma se limitava à formação de diplomatas, hoje a realidade mudou drasticamente, e o interesse é múltiplo, principalmente para os negócios. Muitos chegam no curso sem saber nada de literatura brasileira, meio por acaso. 

Jorge Amado continua sendo o autor mais traduzido. Em segundo lugar vem o Paulo Coelho. E aí há todo um conjunto de obras que foram traduzidas e caíram no esquecimento. Mais recentemente a escolha passou a ser por obras mais comerciais. 

Português costumava ser um curso para quem não tinha nota para fazer outros cursos. Isso mudou, porque falar português virou uma oportunidade de conseguir emprego em países lusófonos. Hoje a maioria dos meus alunos consegue emprego em empresas de comércio eletrônico, o que é até melhor para eles, porque não precisam viajar.

Como é a imagem do Brasil?

Em geral é positiva. O futebol ajuda, como vimos durante a Copa, com crianças vestindo a camisa da seleção. E o Brasil nunca teve tensões com a China. O primeiro momento negativo foi no último governo, por causa da família Bolsonaro. 

Isso teve uma repercussão ruim entre os chineses envolvidos com o Brasil, alguns ficaram revoltados. Mas a reação não era contra o Brasil, era contra o Bolsonaro. A volta do Lula reacendeu uma esperança de boas relações, que não necessariamente corresponde à realidade. O mundo mudou, os interesses da China são diferentes da época da última visita de Lula. 

É preciso ter mais clareza sobre o que o alto escalão espera do Brasil dentro do atual embate internacional. A partir dessa leitura, os chineses poderão intensificar os investimentos no Brasil ou pisar no freio e esperar para ver. Alguns sinais preocuparam os chineses com quem converso, de estruturas mais profundas. 

Um deles foi o apoio do Brasil na ONU contra a Rússia. Eles não entendem porque o país não se absteve, qual foi o ganho para o Brasil. Porque se a Rússia implodir também será a implosão do Brics [grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], que é um ponto de colaboração. Então esse conflito na Ucrânia e como o Brasil se posiciona será um fator importante.

Como a centralização do poder em Xi Jinping pode afetar a relação bilateral?

Há dois conceitos que vêm sendo muito repetidos pelo governo chinês, a “diplomacia dos chefes de Estado” e “relações entre grandes países”. São conceitos que devem ser comandados por um grande líder, que é o Xi. Isso pode facilitar na relação com o Brasil, porque quando o líder empenha a sua palavra os escalões inferiores obedecem. 

A China não tem interesse na queda do Brasil. E também não vai forçar o Brasil a tomar um lado. Eles entendem a situação geopolítica do Brasil e suas lutas internas. Um Brasil mais desenvolvido e com menos problemas sociais ajuda na estabilidade que a China deseja para o mundo. Portanto, no contexto atual é melhor ter um líder como o Xi, com o poder unido em torno de um objetivo.

O que o discurso chinês revela sobre as ambições do país?

A China está num processo de falar o que o outro quer ouvir, criando um espaço favorável nas relações internacionais para levar adiante os processos que são do seu interesse. A linguagem usada mostra isso. Por exemplo, a China não bateu na globalização, como fez parte da esquerda. Ao contrário, apoiou o processo, mas com “características chinesas”. 

O mesmo com a modernização, a palavra do momento no país. Até democracia. Não é democracia com o povo votando, mas democracia entre os países. É uma apropriação de conceitos ocidentais para conseguir um protagonismo no cenário internacional.


Fonte: O GLOBO