Governo de São Paulo terá que lidar com impasse histórico de uso e ocupação do solo para garantir moradias à população vulnerável, mais atingida pela tragédia no Litoral Norte

A construção de novas moradias em terrenos seguros no Litoral Norte, prometida pelo governo de São Paulo aos desabrigados das chuvas em São Sebastião, expõe um desafio antigo na região. Assolada por pressão imobiliária, desigualdade e falta de terras disponíveis, a cidade, epicentro do desastre, terá de vencer entraves como a dificuldade de verticalização pela escassez de terrenos planos e devido à topografia das encostas da região.

A proposta do governo de São Paulo prevê a retirada de moradias de áreas de risco, uso de novas teAcnologias de construção e a demolição de imóveis em situação irregular. Além de 65 mortos, a tragédia no Litoral Norte de SP deixou 4.066 pessoas sem teto, entre desabrigados e desalojados.

— Hoje temos algumas áreas com a possibilidade de construção de até nove metros de altura. Queremos chegar até 15 metros. Teríamos condição, numa mesma área, de aproveitar mais o terreno e fazer novas casas — disse o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, em entrevista coletiva na semana passada.

Há outras variáveis que se sobrepõem no problema habitacional como questões sociais e a presença do Parque Estadual da Serra do Mar, importante reserva de Mata Atlântica que precisa ser protegida.

— Há anos diferentes gestões da prefeitura propõem mudanças de uso do solo para permitir alguma verticalização, boa parte conectadas a zonas especiais de interesse social e habitações populares. Mas o valor da terra é alto, porque há pouca área passível de ser urbanizada. Também há questões ambientais, como o Parque Estadual da Serra do Mar, importante reserva de Mata Atlântica, do outro lado. 

E no meio está a população mais pobre. O resultado é a formação de uma espécie de cinturão de extrema precariedade e desigualdade — explica Luciana Travassos, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Segundo ela, as iniciativas passam por disponibilizar infraestrutura, urbanizar assentamentos e produzir habitações de interesse social. Travassos acrescenta que o poder público tem ficado preso nesses obstáculos: nem altera a regulamentação para permitir algum grau de verticalização e nem propõe outras alternativas habitacionais.

Um outro complicador é que a falta de infraestrutura urbana e de saneamento instiga uma resistência por parte de moradores e associações nessas localidades. Travassos pontua que as ações devem ser integradas e que não adianta alojar a população que ocupa as encostas ou áreas de risco longe de seus locais de trabalho e sem opção de mobilidade.

A indisponibilidade de terras foi lembrada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin no fim de semana, quando ele esteve na região:

— Uma das dificuldades no litoral é terreno — afirmou o ex-governador de São Paulo. — Conseguir terreno seguro e juridicamente possível é muito importante. O governo federal entrará nisso.

Ontem, Tarcísio afirmou que pretende contar com aporte financeiro de empresários para a construção de casas no Litoral Norte.

— Em 30 dias, vamos tentar construir as vilas de passagem, que seriam aquelas casas temporárias para formar um pulmão habitacional. São residências modulares para serem feitas de forma rápida. A legislação local já comporta o que queremos fazer lá. 

A ideia é tirar todo mundo dessas áreas (Juquehy e Barra do Sahy) — disse o governador ao GLOBO, prometendo que, no próximo verão, as pessoas em situação de vulnerabilidade já estarão morando fora das zonas de risco.

Na semana passada, Tarcísio assinou decreto para desapropriar uma área de mais de 10 mil metros quadrados na Barra do Sahy, que será usada nos projetos habitacionais. Também serão erguidas moradias para pessoas de baixa renda em terrenos cedidos pela prefeitura de São de Sebastião. O governador estimou que o setor privado deve disponibilizar R$ 7,5 milhões para o aluguel de pousadas que vão funcionar como abrigos provisórios.

Desigualdade

A região é, sobretudo, desigual. Entre 2019 e 2021, período que inclui a pandemia, a área formada pelo Litoral Norte e o Vale do Paraíba registrou o maior empobrecimento em todo o estado de São Paulo. Segundo o Mapa da Nova Pobreza, publicado pela Fundação Getulio Vargas em junho do ano passado, 21,69% dessa população vivem hoje abaixo da linha de pobreza, com uma renda domiciliar per capita de até R$ 497. Trata-se da região do estado em que há, proporcionalmente, mais pessoas nesse estrato social. Antes da pandemia, esse contingente representava 14,6% da população.

— Estamos vendo uma tragédia no estado mais rico da federação, em sua área mais pobre e onde a pobreza aumentou em quase 50% em dois anos. É choque sobre choque — diz Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

Enquanto convive há anos com casas em encostas e locais de risco, São Sebastião abriga condomínios de luxo, com casas de até R$ 35 milhões em bairros como Juquehy e Barra do Una. Neri observa que o risco na região afeta a todos, mas sobretudo os mais pobres.

— O risco afeta a todos, mas mais os mais pobres — completa Neri. — Levantamento da FGV Social mostra que 9,8% dos domicílios brasileiros estão localizados em área sujeita a inundação. Este número é 22% maior para os 40% mais pobres.

São Sebastião é o retrato disso, mas não é segredo para quem mora ou visita a região. Tampouco para o poder público. No feriado de carnaval, o impacto da série de omissões ou medidas ineficazes tornou-se explícito.

Temporais não são controláveis, mas seus danos podem ser minimizados com medidas do poder público. Em um cenário ideal, a população deveria ser instruída sobre o perigo e treinada sobre o que fazer em momentos de crise. Os moradores deveriam ter sido alertados por sirenes, se deslocado por rotas de fuga elaboradas pelo município e se refugiado em abrigos bem equipados.

O que se viu, no entanto, foi uma comunicação precária da Defesa Civil, que emitiu avisos genéricos via SMS para 34 mil celulares cadastrados na região. Contabilizando 331 mil moradores das quatro cidades costeiras (São Sebastião, Ubatuba, Caraguatatuba e Ilhabela), somados aos 144,6 mil carros que desceram ao litoral no feriado – e considerando hipoteticamente apenas uma pessoa por veículo –, as mensagens atingiram menos de 10% das pessoas que estão na região no fim de semana passado.

Ao mesmo tempo, a ciência enfrentou limitações para prever o maior temporal da história do Brasil. Nenhum modelo meteorológico tem capacidade de identificar uma chuva de 600 milímetros como a que houve no Litoral Norte, segundo Pedro Ivo Camarinha, especialista em desastres do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Isso porque os modelos usados por cientistas são calibrados para representar a condição atmosférica local, e são alimentados por séries históricas de dados dos últimos 30 anos.

— Se esse evento da última semana nunca tinha acontecido até então, esses modelos não tinham a capacidade de prever os 600 mm — afirma Camarinha.

Ainda que o volume exato de água não pudesse ser calculado, o cenário de risco relacionado a uma chuva de aproximadamente 250 mm – que o Cemaden estimou – já dimensionava um desastre de grandes proporções. A gravidade da situação foi repassada à Defesa Civil de São Paulo com dois dias de antecedência: "Caso a previsão se concretize, podem ocorrer deslizamentos generalizados nas áreas de risco nos morros litorâneos e na Serra do Mar, taludes de rodovias e mesmo deslizamentos em encostas naturais de alta declividade", dizia o boletim.

Educação e investimento

Uma série de ações anteriores de educação são necessárias para que a população esteja ciente sobre como agir frente a uma emergência e deixar suas residências em áreas de risco.

— Os riscos têm que ser monitorados constantemente. No caso de São Sebastião, há um relatório do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) mostrando medidas que poderiam ter sido adotadas para reduzir os riscos desde 2018. A mitigação dos riscos é sempre preferencial à remoção das pessoas de sua casa. Cada imóvel deve ser investigado individualmente. 

A ideia é eliminar os riscos antes que a pessoa possa seguir na casa — explica a defensora Taissa Nunes, coordenadora do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. — Quando não é possível, aí sim, a pessoa precisa receber atendimento provisório e definitivo para morar em outro local.

O modelo global no tema é o território de Hong Kong, cujo sistema de alerta envolve uma robusta rede de alertas — com mensagens específicas para diferentes profissões e áreas de residência, por exemplo — e ainda ronda constante na televisão sobre avanços das chuvas. Em outra mão, as encostas são constantemente monitoradas por um banco de dados sobre risco de deslizamento.

Iniciativas como essas demandam continuidade e, principalmente, investimento. Mas o alcance da tragédia mostra que historicamente as autoridades têm falhado em responder aos desafios à altura.

A prefeitura de São Sebastião informa que em 2017, início da atual gestão, a cidade já tinha 102 núcleos urbanos informais que precisavam ser regularizados. Diz ainda que “não recebe verba para a prevenção de desastres naturais desde 2013 - nem do governo estadual e nem da esfera federal, mesmo o município requerendo constantemente”. O governo de São Paulo não retornou.

O Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional informou que, entre 2012 e 2023, foram disponibilizados mais de R$ 2 bilhões ao estado de São Paulo nos programas de governo de gestão de riscos e de desastres.

Levantamento da Associação Contas Abertas, porém, mostra que entre os seis municípios que São Paulo já declarou em emergência (Bertioga, Caraguatatuba, Ilhabela, Guarujá, São Sebastião e Ubatuba), apenas Guarujá e Ubatuba receberam recursos dos programas federais de prevenção e recuperação de desastres no ano passado. Bertioga, Ilhabela e São Sebastião não receberam qualquer centavo para isso nos últimos três anos.


Fonte: O GLOBO